Um homem enfrentou os tanques, mas a força das armas espalhou a morte em Tiananmen
A advertência de Zhang Xianling não teve a força necessária.
Pelo menos é essa a sua convicção. O filho, de 19 anos, saiu porta fora. Ela
disse-lhe: “Não vás para a praça”. Ele respondeu que não. Ela não o perscrutou.
Deixou-o ir, sabendo para onde conduziam os seus passos.
Máquina de fotografar ao ombro, Wang Nan gostava de
testemunhar a história. Documentá-la com os seus flashs para que o retrato
pudesse ter os ângulos necessários. A noite passou, outro dia nasceu e Wang não
voltou.
O testemunho de Zhang Xianling ao diário português Público é
um sinal da força dos que não deixam cair no esquecimento o massacre de 4 de
Junho de 1989, na Praça de Tiananmen, que fez centenas, ou mais de um milhar,
ninguém sabe ao certo, de mortes.
O desfecho dos protestos estudantis para forçar o governo a fazer
mudanças foi o derramamento de sangue. Dezenas de milhares de soldados
avançaram com tanques e tomaram conta da praça. Balas foram lançadas contra
milhares de jovens e adultos que, há sete semanas, pediam liberdade e
democracia. Uma acertou na cabeça de Wan.
Desde o massacre na Praça de Tiananmen, todos os anos, o
governo chinês esforça-se para reprimir a memória. O acesso à praça é
interdito, Pequim enche-se de polícias e militares para evitar evocações e
vários activistas são presos. Tiananmen torna-se um assunto tabu. Uma palavra proibida
no dicionário das proibições.
Este ano, na passagem de um quarto de século, a repressão
intensificou-se com a detenção de advogados, activistas e jornalistas, segundo
a BBC. A Associated Press fala em dezenas de pessoas detidas, outras forçadas a
sair de Pequim ou confinadas às suas casas noutras zonas do país. Cinco
intelectuais foram detidos, no início de Maio, por participarem num seminário
privado sobre Tiananmen num apartamento de Pequim. A sua libertação foi exigida
pela União Europeia e pelos EUA. Mais de 200 especialistas em assuntos chineses
ocidentais e asiáticos juntaram-se aos apelos e pediram a libertação, em duas
cartas abertas dirigidas às autoridades chinesas. E o Clube dos Correspondentes
na China, organização ilegal mas tolerada, protestou contra a perseguição de
que têm sido alvo os jornalistas nas últimas semanas.
Em Hong-Kong, mais de 100 mil pessoas iluminaram, ao início
da noite de 3 de Junho, o Parque Victoria, numa homenagem às vítimas, onde eram
esperadas até 200 mil pessoas. E o Presidente de Taiwan, responsável pela
aproximação entre a ilha e a China, pediu a Pequim reformas políticas para que a
repressão do movimento pró-democracia não se repita.
Pela primeira vez, o jornal oficial «Global Times»,
publicação em inglês do grupo «Diário do Povo», órgão central do Partido
Comunista Chinês, rompeu o silêncio, mas para fazer uma reinterpretação da
histórica.
Ao mesmo tempo que acusou “forças anti-China” ocidentais de
usarem a efeméride para tentar “desestabilizar”, o jornal qualificou o
movimento pró-democracia de 1989 como “uma rebelião contrarrevolucionária”, garantiu
que o país nunca seguirá os passos do Ocidente e disse que a “sociedade chinesa
ainda se lembra como era pobre há 25 anos”, tendo-se transformado entretanto
na “segunda economia mundial”.
O que Zhang Xianling, de 76 anos, não esquece é que a morte
do filho continua impune. No mesmo dia, há 25 anos, morreu uma mulher ingénua e
nasceu uma activista. Ela ajudou a fundar o Grupo Mães de Tiananmen, que tem
como missão responsabilizar o Partido Comunista Chinês pela morte de todos os
filhos que morreram na praça, e desde aí trava uma luta por justiça.
Apesar do cerco policial que, todos os anos, se instala à porta
desta “velhinha”, dos telefonemas de intimidação e dos polícias fardados e à
paisana que lhe seguem os passos, sempre que se aproxima o dia 4 de Junho, Zhang
continua a desafiar as autoridades. Para que a vergonha rompa o silêncio que se
instala na Praça de Tiananmen. Como há 25 anos, as balas romperam por entre a multidão.
*Publicada no dia 6 de Junho de 2014
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