segunda-feira, 16 de junho de 2014

Conter a turba (crónica publicada no Novo Jornal*)

No dia 7 de Maio deste ano, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi espancada até à morte, na sequência de um boato que lançou o alerta sobre uma mulher que estaria a sequestrar crianças para rituais de magia negra. A jovem dona de casa, residente em Guarajá, no estado brasileiro de São Paulo, foi confundida com a sequestradora. Iguais alertas já tinham circulado nos estados de Santa Catarina, Paraná e Pernambuco.
Em São Paulo, o alarme soou depois de o «Guarajá Alerta» ter postado no Facebook uma notícia sobre a acção da suposta criminosa no litoral paulista. A notícia circulou por vários perfis naquela rede social, que ajudaram a disseminar o boato. Todos eles partilharam um retrato-robô, divulgado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, em Agosto de 2012, durante as investigações a uma tentativa real de sequestro. Fabiane foi “condenada” pela justiça popular por ter algumas semelhanças faciais com a suspeita, embora fosse de uma raça diferente e de compleição bem mais magra. No dia 7 de Maio, a dona de casa de Guarajá passeava na rua quando um homem lhe apontou o dedo. Como sofria de um disturbo psicológico, a jovem atrapalhou-se, o rastilho pegou e, em poucos minutos, foi espancada até à morte por uma turba enfurecida.
A justiça brasileira está determinada em fazer justiça e, quem sabe, jurisprudência. Por isso, no dia 5 de Junho, converteu a prisão temporária de cinco suspeitos de envolvimento no linchamento de Fabiane em definitiva. Um esforço para pôr termo à crença na justiça popular, que está muito arreigada na sociedade brasileira.
Uma pesquisa feita pela Secretaria dos Direitos Humanos, em 2009, revelou que 40% dos brasileiros concordam com a justiça popular, com o argumento de que “bandido bom é bandido morto”. E os inúmeros casos provam essa crença. No caso de Fabiane, os alertas que circularam na internet foram acompanhados de incitamento à violência. Em Florianópolis, no estado de Santa Catarina, os moradores partilharam mais de 15 mil vezes o post no Facebook e nos comentários surgiram frases como “quem pegar primeiro deve encher ela de pau”. Muitos portais chegam a apresentar-se como “alternativa de informação para a cidade” e ajudam a difundir boatos, muitos deles sem fundamento, que geram o ódio e a violência.
Um dos detidos no caso de Fabiane é um electricista de 47 anos. Valmir Dias Barbosa, que foi filmado por um vídeo amador a bater na jovem com uma tora, confessou a sua participação e justificou que agiu por ter acreditado em informações passadas pelos vizinhos. Hoje, o homem manifesta-se arrependido, mas no dia seguinte ao linchamento andou pelo bairro a gabar-se do seu feito.
Os vários casos de linchamento no Brasil têm saído impunes. “Não me lembro de nenhum caso que tenha acabado em condenação”, constata em declarações à Globo o sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Ariadne Lima Natal, investigadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, adverte para a distorção que está patente na sociedade por algumas pessoas que “ignoram as leis” e que “querem impor a lei do mais forte”.
“A ideia é dar um recado, denegrir, humilhar e expor a vítima. As pessoas não agem irracionalmente. Acreditam que estão praticando justiça, não um crime”, explica Ariadne, notando que nestes casos é difícil individualizar a culpa, uma vez que muitas pessoas participam no linchamento e é difícil arranjar quem testemunhe contra elas.
Consciente da dificuldade destes casos, o advogado da família de Fabiane quer atacar uma das raízes do mal. Neste caso, a difusão do boato. Por isso, Airton Sinto prepara um projecto-lei, que poderá ter o nome da jovem vítima. O objectivo é alterar o Código Penal para punir quem publica informações em páginas da internet que possam causar comoção, resultando em possíveis agressões.
No Brasil que ontem deu o pontapé de saída à Copa do Mundo, casos como o de Fabiane mostram uma sociedade dividida entre a modernidade e a barbárie ancestral. O grande desafio do Governo de Dilma Rousseff não são os protestos de uma classe média que emerge e que reclama melhores condições de vida. É pôr termo a uma mentalidade medieval. Luta que só se consegue travar com um forte investimento na educação e não em estádios de futebol.


O Paralelos regressa em Julho, após uma pausa de quatro semanas

*Publicada no dia 13 de Junho de 2014

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