Este blogue contém as crónicas publicadas pela autora no semanário angolano «Novo Jornal».
terça-feira, 31 de março de 2015
Cansado (UHF)... Andamos todos cansados!
Porque será que esta música não passou nas rádios?
Eu, pelo menos, não a ouvi.
Vernáculo é mais do que um poema.
É um texto político;
colado à realidade.
Para ler o poema clicar em Ler mais
Vernáculo
"Estou cansado, pá
Cansado e parado por dentro Sem vontade de escolher um rumo Sem vontade de fugir Sem vontade de ficar Parei por dentro de mim Olho à volta e desconheço o sítio As pessoas, a fala, os movimentos A tristeza perfilada por horários Este odor miserável que nos envolve Como se nada acontecesse E tudo corresse nos eixos. Estou cansado destes filhos da puta que vejo passar Idiotas convencidos Que um dia um voto lançou pela TV E se acham a desempenhar uma tarefa magnífica. Com requinte de filhos da puta Sabem justificar a corrupção O deserto das ideias Os projectos avulso para coisa nenhuma A sua gentil reforma e as regalias Esses idiotas que se sentam frente-a-frente no ecrã À hora do jantar para vomitar O escabeche de um bolo de palavras sem sentido Filhos da puta porque se eternizam Se levam a sério E nos esmigalham o crânio com as suas banalidades: O sôtor, vai-me desculpar O que eu quero é mandá-los cagar Para um campo de refugiados qualquer Vê-los de Marlboro entre os dedos a passear o esqueleto Entre os esqueletos Naquela mistura de cheiros e cólicas que sufoca Apenas e só -- sufoca. Estou cansado Cansado da rotina Desta mentira que é a vida Servida respeitosamente Com ferrete Obediente Obediente. Estou cansado de viver neste mesmo pequeno país que devoram Escudados pelas desculpas mais miseráveis Este charco bafiento onde eles pastam Gordos que engordam Ricos que amealham sem parar Idiotas que gritam Paneleiros que se agitam de dedo no ar Filhos da puta a dar a dar Enquanto dá a teta da vaca do Estado Nada sabem de história Nada sabem porque nada lêem além Da primeira página da Bola O Notícias a correr E o Expresso, porque sim! Nada sabem das ideias do homem Da democracia Atenas e Roma Os Tribunos e as portas abertas E a ética e o diálogo que inventaram o governo do povo pelo povo Apenas guardam o circo e amansam as feras Dão de comer à família até à diarreia Aceitam a absolvição E lavam as manápulas na água benta da convivência sã Desde que todos se sustentem na sustentação do sistema Contratualizem (oh neologismo) o gado miúdo Enfatizem o discurso da culpa alheia Pela esquizofrenia politicamente correcta: Quando gritam, até parece que se levam a sério Mas ao fundo, na sacristia de São Bento O guião escrito é seguido pelas sombras vigentes. Estou cansado Cansado da rotina Desta mentira que é a vida Servida respeitosamente Com ferrete Obediente Obediente. Estou farto de abrir a porta de casa e nada estoirar como na televisão Não era lá longe, era aqui mesmo Barricadas, armas, pedradas, convulsão Nada, não há nada Os borregos, as ovelhas e os cabrões seguem no carreiro Como se nada lhes tocasse -- e não toca A não ser quando o cinto aperta Mas em vez da guerra Fazem contas para manter a fachada: Ah carneirada, vossos mandantes conhecem-vos pela coragem e pela devoção na gritaria do futebol a três cores Pelas vitórias morais de quem voa baixinho E assume discursos inflamados sem tutano. Estou cansado Cansado da rotina Desta mentira que é a vida Servida respeitosamente Com ferrete Obediente Obediente. Estou cansado, pá Sem arte, sem génio, cansado: Aqui presente está a ementa e o somatório erróneo do desempenho de uma nação Um abismo prometido Camuflado por discursos panfletários: Morte aos velhos! Morte aos fracos! Morte a quem exija decência na causa pública! Morte a quem lhes chama filhos da puta! - E essa mãe já morreu de sífilis à porta de um hospital. Mataram os sonhos Prenderam o luxo das ideias livres Empanturraram a juventude de teclados para a felicidade E as famílias de consumo & consumo Até ao prometido AVC Que resolve todas as prestações: Quem casa com um banco vive divinamente feliz E tem assistência no divórcio a uma taxa moderada pela putibor. Estou cansado, pá Da surdez e da surdina Desta alegria por porra nenhuma Medida pelo sorriso de vitória do idiota do lado Quando te entala na fila e passa à frente É a glória única de muita gente Uma vida inteira... Eleitos, cuidem da oratória..."
António Manuel Ribeiro
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