segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Finalmente livre (crónica publicada no Novo Jornal)

Pode um homem passar mais de 30 anos sem cometer qualquer crime de sangue, num regime democrático? Pode.
Miguel Montes Neiro foi libertado, após 32 anos preso, em Espanha. À custa de querer ser livre, foi aumentando as grades do cárcere. Saiu em liberdade, aos 61 anos, uma década antes do termo da pena, graças a um amplo movimento de apoio que chamou a atenção para o preso mais antigo de Espanha. Sem que tenha cometido qualquer delito de sangue, como se lê no site que foi criado em sua defesa.
Num país em que os crimes de sangue encheram prisões, na sequência dos inúmeros atentados do movimento independentista basco ETA, o caso de Miguel Montes Neiro impressiona pela brutalidade com que o sistema se abate sobre um homem que, fruto do infortúnio, acumulou pequenos delitos.
Foi preso pela primeira vez em 1976, quando foi acusado de deserção. Cumpriu pena e saiu para iniciar um trajecto de acusações, prisões e reincidências. Acumulou casos por roubo, desacatos, posse ilícita de armas, documentos falsos, delitos contra a saúde pública e violação da liberdade condicional. Mas nunca as suas mãos se mancharam de sangue. Nunca usou a violência como arma e recusou a maldade como instrumento.
Este granadino de alma flamenga foi agravando a pena, sobretudo, pelas suas reiteradas fugas. A última foi em 2009. Obteve autorização para assistir ao funeral da mãe, não regressou. Foi detido e colocado na prisão de Albolote, a 25 quilómetros de Granada.
A história de Neiro começa de forma tão incrível como todo o seu trajecto prisional. Tinha 26 anos, quando foi acusado de ter desviado uma arma, num quartel de Ceuta, onde prestava serviço como legionário.
Permaneceu nos calabouços, durante cinco dias. Ao sexto dia, o suboficial que o acusou dirigiu-se à cela. Pediu-lhe perdão, o fuzil tinha sido encontrado. Fora roubado por um alemão. Pela “nódoa” foi impedido de voltar ao grupo de regulares para prestar serviço militar obrigatório. Foi acusado de deserção. E regressou aos calabouços.
Mas é preciso recuar 10 anos e depois mais quatro para perceber como o destino de Miguel estava traçado.
Aos 16 anos, foi preso por um roubo no bairro de Zaidín, em Granada. A irmã mais velha de Neiro, Encarna, não tem dúvidas. “Havia uma mão negra por detrás daquela detenção”.
Encarna recorda a história: “Aos 12 anos, o meu irmão jogava aos índios com outros meninos. Um dia, uma flecha golpeou, sem querer, outro rapaz, que era filho de um agente da polícia nacional. O pai dele nunca lhe perdoou”.
Miguel arrepende-se dos crimes que cometeu, mas não lastima as fugas. “Se não fosse por esses momentos, quando podia estar com a minha família?”, interrogou numa conversa na cadeia com o jornal El Pais.
Numa das fugas, conheceu a mulher com quem se casou e de quem se divorciou. Noutra apaixonou-se pela mãe das suas duas filhas, Estrella, de 13 anos, e Ángeles, de 15. Na fuga em que foi pai, viveu em Marrocos, mas voltou à Andaluzia porque queria estar com toda a sua família. “Tem sede da família”, explica a irmã.
Miguel viveu sempre a 200 por cento. Nas fugas correu pelos telhados como o homem aranha; simulou tentativas de suicídio para ir parar aos hospitais, porque ali “os vigilantes baixam a guarda” e, numa delas, chegou a casa de táxi com as costas rasgadas da reanimação e a pele inchada. Na prisão viveu “cada momento como se fosse o último, porque podia sê-lo”. Devorou livros; fez greve de fome – durante uma 30 presos escreveram uma carta a mostrarem-se dispostos a acompanhá-lo na greve, mas Miguel respondeu-lhes: “Luto pela minha liberdade, não pela vossa”. Escreveu cartas, mensagens a pedir ajuda e a contar a sua dor. Fez esculturas em cerâmica (sobretudo do cantor de flamengo Camarón) e vendeu-as para dar a receita à viúva do cantor, que atravessa dificuldades económicas porque só herdou os direitos de autor de 17 canções uma vez que a autoridade nacional considerou que Camarón era apenas um intérprete. Não desperdiçou um único campeonato de xadrez organizado pela cadeia, porque o prémio era uma visita extra; ganhou-os todos.
Dos 32 anos de clausura, Miguel só recorda os 1.386 dias que passou fora dos muros da prisão. Sobretudo os que partilhou com as filhas. É a elas que se junta para passar os dias que lhe restam. Os 8.775 dias de cárcere ficaram dentro dos muros de Albolote.
“Sinto-me livre!”, exclamou à saída do estabelecimento prisional, depois de lhe ter sido concedido o indulto.
Já não é uma liberdade condicionada, extorquida. Mas efectiva.
Miguel pode finalmente moldar o futuro que sempre lhe foi roubado.

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