segunda-feira, 25 de junho de 2012

Caça às bruxas (crónica publicada no Novo Jornal)

Meryl Streep, a recordista de nomeações para os Óscares, protagonizou, em 1988, um filme que marcou a sua consagração internacional pela forma sublime como a actriz norte-americana encarnou o drama de uma mulher que perde um filho e ainda tem de enfrentar uma farsa judicial montada por uma opinião pública eivada de preconceitos.
Graças a «Grito no Escuro» (na versão inglesa «A Cry in The Dark»), Streep ganhou o prémio de melhor actriz no Festival de Cannes, além de uma nomeação para o Óscar (a oitava num total de 17 até hoje), e o filme do realizador Fred Schepisi ganhou quatro Globos de Ouro (prémio atribuído anualmente pela crítica estrangeira em Nova Iorque).
Para além de uma interpretação surpreendente, o filme parte de um drama real.
«Grito no Escuro» conta a história do casal Chamberlain, sobre quem se abate a tragédia ocorrida no estado australiano de Queensland, em 1980, quando o pastor adventista Michael e a sua mulher Lyndi partem de férias com os seus três filhos Aldam, Reagan e Azaria, de apenas nove semanas de vida.
Na noite de 17 de Agosto desse ano, Lyndi deita a pequena Azaria na tenda montada no acampamento em Ayers Rock (a maior rocha do mundo) e regressa para junto dos companheiros de férias.
Alertada pelo choro da bebé, a jovem mãe corre para a tenda e apercebe-se que a recém-nascida está a ser levada por um dingo (cão selvagem comum na Austrália). O casal e amigos, a que se junta mais tarde a polícia, embrenham-se pela noite numa busca desenfreada por Azaria. Em vão. Não há vestígios da pequena, nem do dingo ou dingos e a opinião pública australiana agarra-se aos relatos sensacionalistas da imprensa, que vai alimentando um fluxo noticioso com base em boatos em torno da vida religiosa do casal, para condenar os Chamberlain.
Os jornais falam em sacrifícios e cultos estranhos; distorcem as declarações dos pais de Azaria, transformando-as em acusações contra si próprios; e inflamam os ânimos da opinião pública que vai centrando o libelo acusatório na figura da mãe, interpretando a aparente aceitação pela morte da filha como uma declaração de culpa.
Num primeiro julgamento, Lyndi e o marido são absolvidos, mas, pressionada pela histeria colectiva que se gera e que é escorada no argumento de que os dingos só atacam para se defender, a justiça australiana monta novo processo judicial contra a mãe da bebé.
O segundo julgamento culmina com a condenação de Lyndi à pena de prisão perpétua, com base em provas forenses inconsistentes, em factos que não encaixam entre si, em depoimentos contraditórios de especialistas e em inúmeros mitos, fruto da intolerância contra a religião do casal.
Várias cenas de «Um grito no escuro» vão dando pistas sobre a intolerância religiosa. Um camionista, no início do filme, passa em frente a uma igreja adventista e exclama: “Adventistas desgraçados”. No acampamento em Ayers Rock, um campista manifesta a sua estranheza pelo facto de Michael não beber álcool e estar a comer um bife vegetariano, ignorando que os adventistas optam por uma alimentação saudável. E até um caixão encontrado pela polícia, numa busca à casa dos Chamberlain, serve como prova de acusação.
O caixão era utilizado pelo pastor em palestras contra o tabagismo. Nessas sessões, Michael pedia aos fumadores que jogassem os seus maços de cigarro para dentro da tumba, numa atitude simbólica que significava a troca da morte pela vida.
Em 1988, oito anos após o trágico desaparecimento de Azaria, a polícia australiana encontra o casaquinho da recém-nascida, exactamente como Lyndi o descrevera, e a Justiça vê-se obrigada a inocentar a mãe. Os Chamberlain iniciam então uma batalha pela afirmação da sua inocência. Declaração que chegou esta semana.
Uma médica legista australiana concluiu, 32 anos depois, que afinal foi um dingo que levou Azaria na fatídica noite de 17 de Agosto de 1980, ilibando definitivamente os pais que, entretanto, se divorciaram e vivem hoje vidas separadas.
“Obviamente que estamos aliviados por termos chegado ao fim desta saga”, afirmou Lyndi à porta do tribunal.
Michael destacou o facto de a verdade vir ao de cima. “Agora temos alguma paz e a possibilidade de colocarmos o espírito da nossa filha em descanso”, comentou.
Com base neste veredicto, a certidão de óbito de Azaria foi finalmente emitida. E Michael e Lyndi puderam proclamar a sua inocência. Uma inocência “criminalmente” roubada por todos aqueles que promoveram uma autêntica caça às bruxas, sem quaisquer escrúpulos ou pudor, esquecendo-se do compromisso que têm para com a verdade.

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