Os estudantes guineenses encontram-se no Brasil, ao abrigo de programas de intercâmbio, com vistos temporários de estudante. Devido a dificuldades financeiras, muitos deles não conseguiram renovar a matrícula na faculdade e, sem o vínculo estudantil, acabaram por perder o direito a renovar o visto, ficando sob a ameaça de expulsão do território brasileiro.
“A instável situação política e económica da República da Guiné-Bissau, que prejudicou inclusive a subsistência dos estudantes no Brasil, na medida em que dependiam de recursos dos seus familiares, desaconselha a deportação”, justificou a magistrada Germana de Oliveira Moraes.
A decisão da juíza obrigou a embaixada da República da Guiné-Bissau em Brasília a reagir. Em comunicado, a representação diplomática guineense informou que vai enviar “o mais rapidamente possível” o assessor jurídico da chancelaria do Ceará para que as dívidas dos estudantes com as universidades sejam renegociadas e a sua situação regularizada.
Na semana em que se comemorou o 94º aniversário de Nelson Mandela, data que a ONU consagrou à solidariedade social - em homenagem ao homem que transformou a África do Sul, com o seu exemplo de pacificador que serviu de estímulo à reunificação de um país dividido pelo apartheid - a sentença da magistrada brasileira tem um significado especial. E é um bom exemplo de que a justiça não deve ser aplicada de forma cega, obedecendo exclusivamente aos instrumentos legais vigentes, mas deve ter em conta o contexto em que ela é aplicada e os actores que dela beneficiam.
No país de Madiba, milhões de sul-africanos responderam ao mote lançado pela ONU – «Faça a diferença: seja um transformador no Dia de Mandela» - e fizeram trabalho comunitário, como construção de casas para sem-abrigo ou tarefas diárias em infantários e lares de idosos para os mais desfavorecidos, numa acção que se prolongou muito para além dos 67 minutos recomendados.
O acórdão da juíza brasileira, proferido um dia depois do aniversário de Mandela, também é um documento transformador e deveria servir de elemento de reflexão para os dirigentes e representantes da elite governativa guineense, num problema que há anos é recorrente: o incumprimento dos compromissos assumidos com os estudantes bolseiros no estrangeiro, comprometendo, assim, o seu futuro e o futuro do país.
Em matéria de decisões judiciais, a semana de Madiba teve outras boas notícias. No Chile, dois coronéis na reforma da Força Aérea foram detidos e acusados da morte, sob tortura, do pai da ex-Presidente chilena Michele Bachelet.
A decisão, que abre caminho à responsabilização dos autores de milhares de assassinatos durante a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990), foi tomada pelo juiz que está a investigar, desde 2011, as causas da morte do general da Força Aérea Alberto Bachelet em 1974.
Ramon Caceres e Edgar Ceballos são acusados como “coautores do crime de tortura, visando a morte” de Bachelet, de acordo com a decisão do juiz Mario Carroza que deve ter sido aplaudida por outro magistrado, o juiz espanhol Baltasar Garzón, internacionalmente conhecido quando emitiu um mandato de captura em nome de Pinochet.
Garzón, que na terça-feira foi homenageado na cidade brasileira de Porto Alegre, defendeu a criação de comissões de investigação sobre as violações dos direitos humanos por regimes totalitários, algo que Espanha “não é capaz” de levar a cabo.
“No meu país há medo de uma comissão de verdade”, declarou o magistrado espanhol, referindo-se à investigação dos factos ocorridos durante o regime militar que governou o país, depois do golpe de Estado de 1936, sob a batuta do general Franco.
O próprio Garzón viu-se impedido de exercer a magistratura, em Fevereiro deste ano, depois de ter sido acusado dos delitos de prevaricação e violação de garantias constitucionais, ao tentar investigar os crimes do franquismo, ignorando a Lei da Amnistia que abrange aquele período.
Baltazar justificou a importância das comissões de verdade para que se reconheçam as violações dos direitos em nome da “dignidade das vítimas”, salientando que a “defesa do Estado é a defesa dos seus cidadãos”.
Nesta questão, Espanha tem de olhar para a sua ex-colónia, o Chile, que começa a dar lições sobre como fazer justiça, o respeito pela dignidade e, acima de tudo, pelo direito humano à verdade.
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