terça-feira, 15 de outubro de 2013

A cilada (crónica publicada no Novo Jornal*)

O Brasil voltou aos tumultos. Manifestações de professores no Rio de Janeiro insuflaram ar na onda de protestos que invade as ruas das principais cidades, com os media a terem uma actuação ambígua, que oscila entre a tradicional hostilidade ao governo e a antipatia para com os movimentos de protesto.
O jornalista Luciano Martins Costa tem sido uma das vozes mais activas na denúncia das arbitrariedades dos media, usando o espaço radiofónico do Observatório de Imprensa para pôr a nu uma certa esquizofrenia reinante entre os principais meios de informação brasileiros.
No dia 24 de Setembro, num artigo intitulado «A ressaca moral da Imprensa», Luciano chama a atenção para uma alteração de comportamento na cobertura de um dos assuntos mais polémicos dos últimos meses: o programa Mais Médicos.
“Depois de haverem oferecido amplos espaços e até estimulado o boicote promovido pelas associações médicas, os jornais mudam de posição e passam a contabilizar os prejuízos causados no sistema de saúde pelo movimento corporativista dessas entidades”.
“O caso mais interessante é o do Globo, que durante a recepção dos primeiros profissionais vindos do exterior chegou a publicar títulos jocosos que claramente procuravam desmoralizar o programa. Na terça-feira (24/9), o jornal carioca tem como manchete um balanço dos estragos produzidos pelo corporativismo das entidades médicas. “De norte a sul do Brasil, a cena foi a mesma: médicos formados no exterior chegaram para o trabalho no Programa Mais Médicos, mas não puderam atender ninguém porque os Conselhos Regionais de Medicina não concederam os registros provisórios”, diz o texto na primeira página”.
De maneira quase unânime, como regista o ex-editor do «Estado de S. Paulo», os “três principais diários de circulação nacional induzem o leitor a condenar a atitude das associações profissionais de saúde, sobre as quais pesa a responsabilidade pelos problemas criados com a falta de atendimento nos lugares mais pobres do país”, o que leva Luciano Martins a questionar: “O que teria mudado na orientação das redacções, que até poucas semanas mal conseguiam dissimular o regozijo pelas dificuldades na implantação do programa de emergência?”
Esta semana, surge uma nova prova da remissão dos media brasileiros, protagonizada pelo mesmo diário carioca. Depois de uma forte investida contra os manifestantes que, em várias cidades, protestam contra os gastos com o Mundial de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, defendendo em alternativa o investimento em áreas vitais, como a saúde e educação, «O Globo» denuncia uma manobra da Polícia Militar para prender um manifestante, no Rio de Janeiro.
A equipa de reportagem do diário regista o momento em que um polícia coloca um morteiro na mochila de um dos manifestantes, simulando um “flagra”. O vídeo obrigou o Comando da Polícia Militar a indiciar os dois oficiais que comandaram a operação e fez crescer uma onda de indignação contra a actuação da polícia, sistematicamente acusada de violência. Um dos agentes da PM envolvidos é o mesmo que é apanhado a lançar gás pimenta contra uma professora.
As imagens dos repórteres de «O Globo» não deixam margem para dúvidas. Elas começam no momento em que um graduado da PM circula por entre os manifestantes, que começam a dispersar, com um morteiro na mão. A data altura, os agentes cruzam-se com um grupo de jovens. Mandam-nos virar as costas e abrir as bolsas. Um miúdo abre a mochila. O polícia que tem o morteiro na mão aproxima-se e mete o artefacto dentro do saco. De imediato, dá voz de prisão ao rapaz. “Eu não fiz nada”, reage o menor. Pelo aspecto não deve ter mais de 16 anos. Está apavorado. O jovem é algemado e levado pela polícia. Os colegas seguem-nos: “Cadê o morteiro? Cadê o morteiro?”, interrogam. Uma rapariga grita: “Eu sou testemunha que eles plantaram o morteiro ali, eu sou testemunha…” A jovem dirige-se à equipa de repórteres e adverte-os para a cilada. Um posterior visionamento da cena confirma a suspeita. O vídeo é posto nas redes sociais, com a indicação de que as imagens foram “registadas durante o protesto do dia 30 de Setembro, na rua São José e arredores, no centro do Rio de Janeiro.

Os jornalistas cumpriram a missão de informar com verdade. É isso que se espera deles. E não que tomem partido. Por nenhuma das partes.

Publicada no dia 4 de Outubro de 2013

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