O Ruanda produziu um desfile de horrores num curto espaço de tempo
Passaram domingo, 6 de Abril, 20 anos desde o início do
genocídio no Ruanda. Um massacre sem precedentes, com muitas contas por acertar.
O Ruanda não foi “uma explosão espontânea de ódio”, como
regista o professor catedrático português Viriato Soromenho-Marques. Foi
“planeado politicamente com meses de antecedência, incluindo-se aqui a compra
de material bélico, com dinheiro público”.
O genocídio do Ruanda é, sem receio de desmentidos, a
vergonha da ONU, do seu Conselho de Segurança e, sobretudo, de Boutros
Boutros-Ghali, secretário-geral entre 1992 e 1996, como revela o documentário
«U.N. ME», na versão portuguesa «ONU – Abusos e Escândalos», de Ami Horowitz e
Matthew Groff.
Antes do massacre, o sentimento de segurança no país era tão
grande que Carl Wilkens, da ajuda humanitária, recorda: “Costumávamos dizer, a
brincar, que não se podia cuspir sem atingir um carro da ONU”.
Mas este sentimento não disfarçava o ambiente que pairava no
ar, antes do avião que transportava os Presidentes do Ruanda e do Burindi ter
sido abatido, a 6 de Abril.
O assassinato dos dois presidentes foi o elemento
catalisador, mas há muito estava a ser preparado o massacre, como revelou um
informador da milícia Interahawe, dias antes, numa conversa com o coadjutor de Dallaire,
o tenente belga Luc Marchal.
“Ele disse-lhe que estavam a ser feitas listas, que havia
armas escondidas, que os jovens estavam a ser treinados para matar e que o
objectivo era matar 1000 pessoas a cada 20 minutos”, recorda a jornalista britânica
Linda Melvern, que passou duas décadas a investigar o genocídio.
Com dados concretos sobre a conspiração para exterminar os
tutsis, Dallaire enviou um telegrama para a sede da ONU, dirigido a Kofi Annan,
o então director das missões de paz.
Mas o telegrama perdeu-se nos corredores e o Conselho de
Segurança nunca foi informado, como confirma o seu presidente na altura, Collin
Keating.
Numa situação destas, a autoridade operacional não precisa
de aprovação do Conselho de Segurança. “Era uma operação militar modesta, mas
que enviaria um sinal de que nós, ONU, sabíamos o que se estava a passar”,
recorda Ken Cain, ex-soldado da paz.
Mas de Nova Iorque veio a ordem para a missão recuar. Que era
mais importante proteger a “imagem de imparcialidade” da ONU. “Senti que me
tinham cortado as pernas”, lamentou Dallaire.
Entretanto, a queda do avião presidencial põe em marcha o
massacre. Os tutsis refugiam-se onde podem: escolas, igrejas e clínicas. A
missão da ONU, sediada na École Technique Officiale, abre a porta a 2.500
refugiados: velhos, crianças, mulheres. As milícias concentram-se no exterior,
ameaçam e gritam: “Poder hutu” e “morte às baratas”.
O contingente da ONU pede instruções a Nova Iorque, via
rádio. Surpreendentemente, da sede da organização sai a ordem para abandonarem
o local e “deixarem a carga para trás”. À medida que os soldados da paz saem,
os tutsis imploram-lhes para os matarem. Preferem morrer a tiro do que à
catanada. Momentos depois da evacuação, as milícias invadem a escola e iniciam
a matança.
Enquanto o massacre decorre Boutros-Gali anda pela Europa, a
receber graus honoríficos. A visita de três dias continua, perante a estranheza
de altos funcionários da ONU. Dois presidentes africanos assassinados e uma
guerra civil em curso não interrompem o passeio do egípcio.
“Ele sabia mais sobre o Ruanda do que qualquer outro
funcionário da sua equipa”, afirma Linda Melvern, a quem o ex-secretário-geral
da ONU respondeu, a propósito do seu envolvimento na venda de armas ao Ruanda:
“Não me parece que uns milhares de armas tivessem feito diferença”.
Boutros-Galli não só intermediou a compra de armas ao
Egipto, confirmada por cartas do governo do Ruanda a louvar o seu papel, como
duas agências da ONU financiaram o negócio: o FMI e o Banco Mundial.
Após cinco missões para investigar onde estava a ser gasto o
dinheiro, o Banco Mundial advertiu o Ruanda para não comprar mais armas. Ordem
que o país recusou acatar, obtendo como recompensa a concessão de mais 120
milhões em empréstimos.
A ONU reconheceu, 10 anos depois, culpas por não ter travado
o genocídio a tempo. Mas não assume a sua verdadeira participação no massacre.
E devia. Pelo menos para que a vergonha a impeça de repetir o erro.
*Publicada no dia 11 de Abril de 2014
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