quarta-feira, 16 de abril de 2014

A vergonha da ONU (crónica publicada no Novo Jornal (*)

                                                                   O Ruanda produziu um desfile de horrores num curto espaço de tempo

Passaram domingo, 6 de Abril, 20 anos desde o início do genocídio no Ruanda. Um massacre sem precedentes, com muitas contas por acertar.
O Ruanda não foi “uma explosão espontânea de ódio”, como regista o professor catedrático português Viriato Soromenho-Marques. Foi “planeado politicamente com meses de antecedência, incluindo-se aqui a compra de material bélico, com dinheiro público”.
O genocídio do Ruanda é, sem receio de desmentidos, a vergonha da ONU, do seu Conselho de Segurança e, sobretudo, de Boutros Boutros-Ghali, secretário-geral entre 1992 e 1996, como revela o documentário «U.N. ME», na versão portuguesa «ONU – Abusos e Escândalos», de Ami Horowitz e Matthew Groff.
Entre os testemunhos recolhidos, conta-se o do general canadiano Romeo Dallaire, que liderava a Missão de Paz no Ruanda (MINUAR), criada muito antes do genocídio para vigiar o período anterior às eleições.
Antes do massacre, o sentimento de segurança no país era tão grande que Carl Wilkens, da ajuda humanitária, recorda: “Costumávamos dizer, a brincar, que não se podia cuspir sem atingir um carro da ONU”.
Mas este sentimento não disfarçava o ambiente que pairava no ar, antes do avião que transportava os Presidentes do Ruanda e do Burindi ter sido abatido, a 6 de Abril.
O assassinato dos dois presidentes foi o elemento catalisador, mas há muito estava a ser preparado o massacre, como revelou um informador da milícia Interahawe, dias antes, numa conversa com o coadjutor de Dallaire, o tenente belga Luc Marchal.
“Ele disse-lhe que estavam a ser feitas listas, que havia armas escondidas, que os jovens estavam a ser treinados para matar e que o objectivo era matar 1000 pessoas a cada 20 minutos”, recorda a jornalista britânica Linda Melvern, que passou duas décadas a investigar o genocídio.
Com dados concretos sobre a conspiração para exterminar os tutsis, Dallaire enviou um telegrama para a sede da ONU, dirigido a Kofi Annan, o então director das missões de paz.
Mas o telegrama perdeu-se nos corredores e o Conselho de Segurança nunca foi informado, como confirma o seu presidente na altura, Collin Keating.
Numa situação destas, a autoridade operacional não precisa de aprovação do Conselho de Segurança. “Era uma operação militar modesta, mas que enviaria um sinal de que nós, ONU, sabíamos o que se estava a passar”, recorda Ken Cain, ex-soldado da paz.
Mas de Nova Iorque veio a ordem para a missão recuar. Que era mais importante proteger a “imagem de imparcialidade” da ONU. “Senti que me tinham cortado as pernas”, lamentou Dallaire.
Entretanto, a queda do avião presidencial põe em marcha o massacre. Os tutsis refugiam-se onde podem: escolas, igrejas e clínicas. A missão da ONU, sediada na École Technique Officiale, abre a porta a 2.500 refugiados: velhos, crianças, mulheres. As milícias concentram-se no exterior, ameaçam e gritam: “Poder hutu” e “morte às baratas”.
O contingente da ONU pede instruções a Nova Iorque, via rádio. Surpreendentemente, da sede da organização sai a ordem para abandonarem o local e “deixarem a carga para trás”. À medida que os soldados da paz saem, os tutsis imploram-lhes para os matarem. Preferem morrer a tiro do que à catanada. Momentos depois da evacuação, as milícias invadem a escola e iniciam a matança.
Enquanto o massacre decorre Boutros-Gali anda pela Europa, a receber graus honoríficos. A visita de três dias continua, perante a estranheza de altos funcionários da ONU. Dois presidentes africanos assassinados e uma guerra civil em curso não interrompem o passeio do egípcio.
“Ele sabia mais sobre o Ruanda do que qualquer outro funcionário da sua equipa”, afirma Linda Melvern, a quem o ex-secretário-geral da ONU respondeu, a propósito do seu envolvimento na venda de armas ao Ruanda: “Não me parece que uns milhares de armas tivessem feito diferença”.
Boutros-Galli não só intermediou a compra de armas ao Egipto, confirmada por cartas do governo do Ruanda a louvar o seu papel, como duas agências da ONU financiaram o negócio: o FMI e o Banco Mundial.
Após cinco missões para investigar onde estava a ser gasto o dinheiro, o Banco Mundial advertiu o Ruanda para não comprar mais armas. Ordem que o país recusou acatar, obtendo como recompensa a concessão de mais 120 milhões em empréstimos.
A ONU reconheceu, 10 anos depois, culpas por não ter travado o genocídio a tempo. Mas não assume a sua verdadeira participação no massacre. E devia. Pelo menos para que a vergonha a impeça de repetir o erro.

*Publicada no dia 11 de Abril de 2014 

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