terça-feira, 29 de abril de 2014

Solidão e morte (crónica publicada no Novo Jornal*)

                                                           É preciso quebrar o silêncio para pôr termo à morte injustificada de crianças

1 - Bernardo tinha 11 anos. Em Janeiro foi sozinho às instalações do Ministério Público de São Luiz Gonzaga, no estado do Rio Grande do Sul, onde morava. Queria uma família nova, porque a que tinha não gostava dele. Negligenciava-o. Não lhe dedicava o amor que a sua meninice pedia. A mãe morrera, em 2010, alegadamente por suicídio. E Bernardo vivia com o pai, um médico reputado naquele estado brasileiro, e com a namorada deste, uma enfermeira que dedicava ao garoto um desprezo desconcertante.
A procuradora Dinamárcia Maciel acompanhava o caso desde Novembro. A situação tinha de ser tratada com pinças, porque envolvia uma família da classe alta, onde não é suposto haver casos destes. Maus tratos e abandono seriam um exclusivo dos pobres, não de famílias ricas e conceituadas. A magistrada muniu-se dos cuidados que a história requeria.
Farto de esperar, o menino foi ter com ela, expôs as suas razões. Não fez dramas, não chorou. “Não fez chantagem, nem tentou impressionar”, relatou Dinamárcia ao jornal português i. Disse apenas que a “família dele não tinha jeito e que ele tinha encontrado sozinho uma solução para a sua vida: precisava de uma família nova”. Bernardo apontou o nome da família alternativa, mas esta recusou por não querer enfrentar o pai famoso de Bernardo.
A criança pediu pressa. Deu uma semana à magistrada. Em sete dias, Dinamárcia enviou o processo para o juiz pedindo a entrega do menino à avó. A mudança não se concretizou. Foi dada nova oportunidade ao pai de Bernardo.
No dia 4 de Abril, a madrasta e uma amiga, assistente social, foram vistas no carro com a criança. A imagem dos três foi captada por câmaras de vigilância numas bombas de combustível, onde pararam, no trajecto para a povoação vizinha de Três Passos. No regresso, outros aparelhos de videovigilância captaram, já não o trio, mas apenas a madrasta e a amiga. Bernardo foi dado como desaparecido dois dias depois. O pai esteve ocupado em festas nas 48 horas anteriores.
O corpo da criança foi encontrado no dia 14 de Abril, depois de a assistente social confessar o crime e indicar o local, onde tinham enterrado o corpo. Primeiro injectaram-lhe elevadas doses de um anestésico e, antes de o taparem, regaram-no com soda cáustica para acelerar a decomposição do cadáver.
Dinamárcia Maciel sente nos ombros o peso da responsabilidade nesta morte, embora profissionalmente tenha feito tudo de acordo com o que diz a lei. Por isso, quer que o drama de Bernardo sirva para “mudar a lei e responsabilizar a sociedade”.
Ninguém sai imune deste caso. Cada um, família, vizinhos, amigos… tem um “pedaço de culpa no caixão de Bernardo”. Quando foi feito o levantamento, ninguém apareceu para testemunhar e dar consistência às queixas do menino. Depois todos se ergueram para falar em maus tratos, abusos e o mais que houvesse para acrescentar.
Até quando se vai ouvir dizer que é “tarde demais”? Quantos bernardos mais terão de morrer porque a sociedade se demite das suas responsabilidades e, na hora do julgamento, lava as mãos como Pilatos?

2 – A história de Bernardo, que parece saída de uma obra de ficção, não aconteceria na aldeia colombiana de Macondo, onde um grupo de 300 pessoas se fixou após um período de errância, sob a orientação engenhosa de José Arcadio Buendía, o alquimista saído da pena de Gabriel García Márquez. 
Úrsula Iguarán, a matriarca dos Buendía de «Cem anos de solidão», ter-se-ia erguido para defender o menino, nem que para isso tivesse de enfrentar um tribunal, como fez quando, com um grupo de mães, exaltou as virtudes do general Moncada, para evitar o seu fuzilamento, na sequência de uma batalha de anos entre liberais e conservadores.
“Os senhores levaram muito a sério este jogo espantoso, e fizeram bem porque estão a cumprir o vosso dever”, disse aos membros do tribunal. “Mas não esqueçam que enquanto Deus vos der vida, nós continuaremos a ser mães, e por muito revolucionários que sejam, temos o direito de vos descer as calças e vos dar uma sova à primeira falta de respeito”.

Cem anos de solidão é um pungente relato da saga dos Buendía, que marca a consagração de Gabriel García Márquez, o mestre do realismo mágico, que antes de ser romancista foi jornalista. Uma faceta menos conhecida de um dos melhores autores do mundo, que se despediu há menos de uma semana, e que merece ser revista. Mas disso o Paralelos tratará na próxima semana.

*Publicada no dia 25 de Abril de 2014

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