terça-feira, 29 de julho de 2014

Vítimas (crónica publicada no Novo Jornal*)


                                 Foto: Robert Fisk, The Independent

O telefone toca. Do lado de lá da linha está uma jornalista de Buenos Aires. “Pode ligar-me mais tarde? Acabam de explodir duas bombas em frente a nossa casa e parece-me prudente ir embora”, pede María de la Santa Faz, desculpando-se educadamente por não poder responder ao apelo de quem telefona.
A freira nascida em Mendoza, na Argentina, há 44 anos, é uma das muitas pessoas que tiveram de abandonar à pressa o convento no bairro Zeitun, no Oeste de Gaza. As bombas, que desde o dia 7 de Julho caem naquela pequena parcela de território, encravada entre o mar e Israel, não poupam ninguém. Israel diz que visa alvos ligados ao movimento de libertação palestino Hamas, mas as bombas caem em todo o lado: na praia, matando crianças que brincam na areia; em escolas – uma das escolas da ONU, que acolhe alguns dos mais de 117 mil refugiados palestinianos foi atingida esta semana -; em residências habitadas por civis, que nada têm a ver com a guerra entre o Hamas e Israel; e até perto de conventos, ameaçando as muralhas espirituais de quem ali se recolhe.
Apesar do ribombar das bombas lançadas sobre a Faixa de Gaza, a freira Maria não perde a compostura nem a noção de cordialidade que deve dispensar a quem telefona. “Quando ligar de novo, procure pela irmã Maria ou a irmã argentina, sou a única aqui”, diz.
Mais tarde, quando a repórter do jornal La Nácion, Julieta Nassau, liga de novo, encontra as respostas que procura junto de uma compatriota sua que, do outro lado do planeta, espalha a palavra de Deus. E, sobretudo, conforta quem vive no meio da carência imposta por um embargo, criminoso, que Israel mantém há anos para impedir a passagem de armas, mas que impede também o fornecimento de bens alimentares e médicos.
“Aquela era a segunda bomba. E depois ainda houve uma terceira. Foi impressionante, porque foi em frente ao portão da Igreja Católica, onde fica a nossa casa. Três bombas sobre a mesma casa, para destruí-la bem”, explicou a freira, após regressar.
Mais de 700 palestinianos morreram, em 12 dias de investida aérea e terrestre (**). Do lado de Israel, há pouco mais de 30 vítimas mortais, uma delas civil, as restantes militares. A contabilidade das baixas de um lado e do lado ilustra bem a desproporção de meios e a vacuidade do discurso do primeiro-ministro israelita, Benjamim Netanyahu, que responsabiliza o Hamas pelo uso de escudos humanos.
A freira Maria e o padre Jorge Hernández, ambos argentinos da congregação religiosa do Verbo Encarnado, não são escudos humanos ao serviço de uma organização islâmica. São religiosos católicos ao serviço de uma população carenciada e martirizada por anos de conflito, causado pela contestação a uma ocupação - legítima segundo o direito internacional, mas ilegítima pela segregação e desapropriação.
Apesar do estrondo das bombas e do tremor do solo, como descreve o jornal La Nácion, a freira e o sacerdote mantêm a calma, porque é esse o seu papel. Transmitir, ainda que de forma artificial, um pouco de paz aos 1.300 cristãos de Gaza, 10% católicos e os restantes da Igreja Ortodoxa.
A religiosa chegou a Gaza em Janeiro. Viveu nestes seis meses rodeada de crianças, perto de 150 que frequentavam as actividades da igreja e a escola. Passavam quatro dias da semana no prédio da Igreja Católica, onde funciona um colégio, uma igreja e um pequeno cemitério. Ainda um convento – onde vivem Maria, uma freira brasileira e outra egípcia –, uma casa habitada por dois sacerdotes e uma residência para as Irmãs de Madre Teresa, que abriga seis religiosas e 37 crianças portadoras de deficiência.
Nas primeiras semanas de bombardeamentos, as crianças ainda foram à congregação. Depois deixaram de ir. Com medo, os pais proibiram-nas de sair de casa. E a Paróquia Sagrada Família ficou vazia, sem o riso das crianças e a presença dos paroquianos.
Na quinta-feira da semana passada, a população aproveitou a trégua humanitária de duas horas para se abastecer de produtos básicos. “Alguns paroquianos pediram para que celebrássemos a missa”, escreveu o padre Jorge, pároco de Gaza, desde 2009, na página do Instituto do Verbo Encarnado no Médio Oriente. Pouco depois, chegou uma mensagem de conforto do Papa Francisco, com palavras de encorajamento e oração.

O testemunho da irmã Maria e do padre José desmentem o discurso de Netanyahu. Por mais que o governo israelita insista em fazer-se de vítima, há vítimas de um lado e de outro. E é fácil perceber onde estão em maior número.

*Publicada no dia 25 de Julho de 2014
**As vítimas mortais do lado palestiniano, já somam mais de 1.100

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