domingo, 10 de agosto de 2014

A moral e o riso (crónica publicada no Novo Jornal*)


A Turquia foi acometida por uma epidemia de riso, que está a contaminar as redes sociais. Nos últimos dias, sucedem-se fotografias de mulheres a rir na internet. Elas não se limitam a sorrir. Transmitem pela expressão facial uma sonora gargalhada.
A epidemia de riso na Turquia não tem uma origem patológica. É uma reacção, tão espontânea como expressiva, ao apelo arcaico do vice-primeiro-ministro turco Bulent Arinc.

Numa cerimónia que marcou o fim do Ramadão – festa maior do Islão -, Bulent Arinc, um dos fundadores do AKP (partido no poder), defendeu que uma mulher “não deve rir alto em público” e “deve preservar sempre a sua decência em todos os momentos”.
As declarações do vice-primeiro-ministro até poderiam passar incólumes não fossem as recentes tentativas do governo islâmico conservador do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan para que os turcos adoptem um estilo de vida religioso e conservador.
Num estado laico, embora de maioria muçulmana, a ingerência do governo no estilo de vida dos turcos tem suscitado reacções adversas, com as redes sociais a servirem de mural.
Desta vez, as reacções não se limitaram a sátiras dos cidadãos. Também os políticos se juntaram à onda de indignação contra a intervenção do vice-primeiro-ministro, que visou a “corrupção da moral” e onde afirmou que “o homem deve ter moral, mas as mulheres também e que devem saber o que é decente e o que não é”.
Ekmeleddin Ihsanoglu, candidato da oposição nas eleições presidenciais, que se realizam de 10 a 24 de Agosto, fez questão de abraçar o movimento pró-riso. “Nós precisamos de ouvir o riso alegre das mulheres”, escreveu no Twitter, acrescentando: “Mais do que tudo, o nosso país precisa de mulheres que sorriam e de ouvir pessoas a rir”.
Mais contundente foi o comentário de Fatih Portakal, famoso apresentador de televisão turco. “Se as mulheres não se podem rir em público, então, os homens não deveriam chorar em público”, comentou num tweet, citado pela BBC, numa referência às situações em que Bulent Arinc chorou quando assistia a discursos do chefe do governo.
A escritora e comentadora política Ece Temelkuran, uma das vozes mais influentes na Turquia com mais de um milhão de seguidores no Twitter, considerou a intervenção do vice-primeiro-ministro de “escandalosa e conservadora”.
E um utilizador do Twitter, conhecido como bturkmen, deixou um conselho a Arinc, numa referência às suspeitas de corrupção tornadas públicas em Dezembro passado contra o primeiro-ministro Erdogan, que está no poder desde 2002, e a sua comitiva política: “Pare de dar lições de moral, em vez disso, contabilize o dinheiro que nos roubou”.
Inflamada por sucessivos escândalos envolvendo membros do governo, a opinião pública turca tem estado activa e atenta às acções e intervenções dos membros do governo. Desta vez, as reacções foram particularmente expressivas e, apesar de o vice-primeiro-ministro insistir na “utilidade” do seu discurso, não páram. “Se eu tivesse apenas dito que as mulheres não devem rir, então teria feito algo irracional. Mas o meu discurso foi sobre boas maneiras e preceitos morais”, justificou, dando mais impulso à bola de neve.
Canan Arin, uma activista do movimento dos direitos das mulheres, em declarações à AP, lamentou que as mulheres na Turquia tenham de responder a “comentários patéticos” quando têm problemas mais sérios com que lidar, nomeadamente, a frequente violência dos homens contra as mulheres.
A reacção de Melda Onur, deputada do principal partido da oposição, o CHP, vai no mesmo sentido. Segundo a parlamentar, os comentários de Arinc, que classificam o riso como um acto desonroso, deixam as mulheres mais expostas à violência. Tanto assim, que uma associação de defesa dos direitos das mulheres anunciou que vai apresentar uma denúncia contra Arinc temendo a repercussão das suas palavras.
As Nações Unidas instituíram o 20 de Março como Dia Internacional da Felicidade, numa resolução aprovada por unanimidade pelos 193 Estados membros, de que a Turquia faz parte, tornando a busca pela felicidade um “objectivo humano fundamental”.
Limitar uma das expressões do sentimento de felicidade não é um conselho bem-intencionado. É um indício de obscurantismo e misoginia indesculpáveis num membro do governo. A resposta dos turcos é um sinal de civismo e maturidade política.

*Publicada no dia 1 de Agosto de 2014

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