A Turquia foi acometida por uma epidemia de riso, que está a
contaminar as redes sociais. Nos últimos dias, sucedem-se fotografias de
mulheres a rir na internet. Elas não se limitam a sorrir. Transmitem pela
expressão facial uma sonora gargalhada.
A epidemia de riso na Turquia não tem uma origem patológica.
É uma reacção, tão espontânea como expressiva, ao apelo arcaico do vice-primeiro-ministro
turco Bulent Arinc.
Numa cerimónia que marcou o fim do Ramadão – festa maior do Islão -, Bulent Arinc, um dos fundadores do AKP (partido no poder), defendeu que uma mulher “não deve rir alto em público” e “deve preservar sempre a sua decência em todos os momentos”.
As declarações do vice-primeiro-ministro até poderiam passar
incólumes não fossem as recentes tentativas do governo islâmico conservador do
primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan para que os turcos adoptem um estilo de
vida religioso e conservador.
Num estado laico, embora de maioria muçulmana, a ingerência
do governo no estilo de vida dos turcos tem suscitado reacções adversas, com as
redes sociais a servirem de mural.
Desta vez, as reacções não se limitaram a sátiras dos
cidadãos. Também os políticos se juntaram à onda de indignação contra a
intervenção do vice-primeiro-ministro, que visou a “corrupção da moral” e onde
afirmou que “o homem deve ter moral, mas as mulheres também e que devem saber o
que é decente e o que não é”.
Ekmeleddin Ihsanoglu, candidato da oposição nas eleições presidenciais,
que se realizam de 10 a 24 de Agosto, fez questão de abraçar o movimento
pró-riso. “Nós precisamos de ouvir o riso alegre das mulheres”, escreveu no
Twitter, acrescentando: “Mais do que tudo, o nosso país precisa de mulheres que
sorriam e de ouvir pessoas a rir”.
Mais contundente foi o comentário de Fatih Portakal, famoso
apresentador de televisão turco. “Se as mulheres não se podem rir em público,
então, os homens não deveriam chorar em público”, comentou num tweet, citado
pela BBC, numa referência às situações em que Bulent Arinc chorou quando
assistia a discursos do chefe do governo.
A escritora e comentadora política Ece Temelkuran, uma das
vozes mais influentes na Turquia com mais de um milhão de seguidores no
Twitter, considerou a intervenção do vice-primeiro-ministro de “escandalosa e
conservadora”.
E um utilizador do Twitter, conhecido como bturkmen, deixou
um conselho a Arinc, numa referência às suspeitas de corrupção tornadas
públicas em Dezembro passado contra o primeiro-ministro Erdogan, que está no
poder desde 2002, e a sua comitiva política: “Pare de dar lições de moral, em
vez disso, contabilize o dinheiro que nos roubou”.
Inflamada por sucessivos escândalos envolvendo membros do
governo, a opinião pública turca tem estado activa e atenta às acções e intervenções
dos membros do governo. Desta vez, as reacções foram particularmente expressivas
e, apesar de o vice-primeiro-ministro insistir na “utilidade” do seu discurso,
não páram. “Se eu tivesse apenas dito que as mulheres não devem rir, então
teria feito algo irracional. Mas o meu discurso foi sobre boas maneiras e
preceitos morais”, justificou, dando mais impulso à bola de neve.
Canan Arin, uma activista do movimento dos direitos das
mulheres, em declarações à AP, lamentou que as mulheres na Turquia tenham de
responder a “comentários patéticos” quando têm problemas mais sérios com que lidar, nomeadamente, a frequente violência dos homens contra as mulheres.
A reacção de Melda Onur, deputada do principal partido da
oposição, o CHP, vai no mesmo sentido. Segundo a parlamentar, os comentários de
Arinc, que classificam o riso como um acto desonroso, deixam as mulheres mais
expostas à violência. Tanto assim, que uma associação de defesa dos direitos
das mulheres anunciou que vai apresentar uma denúncia contra Arinc temendo a
repercussão das suas palavras.
As Nações Unidas instituíram o 20 de Março como Dia
Internacional da Felicidade, numa resolução aprovada por unanimidade pelos 193 Estados
membros, de que a Turquia faz parte, tornando a busca pela felicidade um
“objectivo humano fundamental”.
Limitar uma das expressões do sentimento de felicidade não é
um conselho bem-intencionado. É um indício de obscurantismo e misoginia
indesculpáveis num membro do governo. A resposta dos turcos é um sinal de civismo
e maturidade política.
*Publicada no dia 1 de Agosto de 2014
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