sábado, 5 de novembro de 2011

A farsa russa (crónica publicada no Novo Jornal)

O Teatro Bolshoi reabriu ao fim de seis anos de restauro. Com muita pompa e circunstância, a batuta regressou a este símbolo russo para dirigir a ópera «Slavsya», do compositor Mjkahail Glinka, mas há muito que está em cena a farsa política na Rússia.

O embuste começou, em 2008, quando Vladimir Putin, por limitação de mandatos, entregou o Kremlin ao seu discípulo Dimitri Medvedev e ficou com o cargo de primeiro-ministro.
Sem fazer grandes ondas, nem ofuscar o brilho do ex-KGB e especialista em artes marciais, Medvedev manteve a sua recandidatura presidencial sempre sobre tabu. Adivinhava-se porquê. Dimitri era um «fantoche» manipulado para servir os interesses do chefe e dos ideólogos da «Rússia Unida», o único partido com liberdade de acção no país. Não espantou, por isso, que a 14 de Outubro, Putin tenha emergido como candidato natural às presidenciais de 2012. Medvedev regressa ao lugar de origem, o cargo de primeiro-ministro.
A farsa tornou-se clara com esta dança das cadeiras, orientada por um libreto bem escrito. Poucos meses após Medvedev tomar posse como Presidente, é aprovada uma reforma constitucional que alarga os mandatos presidenciais de quatro para seis anos. Mas com efeitos só a partir de 2012, ou seja, quando Putin regressar à cadeira presidencial.
A assistir da plateia está o último dirigente soviético, Mikhail Gorbatchev, o homem que entrou para a história pelo papel que desempenhou no desmantelamento do Bloco de Leste e na abertura dos países de regime comunista, que se consagrou com a queda do Muro de Berlim.
Gorbatchev reprovou em Agosto o rumo da política russa - “Acredito que devia haver uma mudança no topo da liderança” - e lembrou que a limitação de mandatos foi introduzida durante a Perestroika, que conduziu à desintegração da União Soviética.
Já em Fevereiro, na véspera de fazer 80 anos, o homem que mudou o mundo criticara uma Rússia de elites “depravadas”, onde a vida política se resume a uma “imitação”.
Numa entrevista ao jornal da oposição «Novaya Gazeta», Gorbatchev confidenciou que o vice-chefe da administração do Kremlin, Vladislav Surkov, que é considerado o principal ideólogo do poder russo, o impediu de criar um partido social-democrata.
“Tinha a intenção de criar um partido. Quando Surkov ficou a saber, ele me perguntou ‘Isso serve para quê? De qualquer maneira, não vamos registar o seu partido”, revelou o pai da Perestroika.
Boris Nemtsov e Mikhail Kassianov, que ocuparam altos cargos políticos na Rússia, sabem do que falava Gorbatchev. Viram o Ministério da Justiça recusar em Junho o registo do Partido da Liberdade Popular.
Em entrevista à rádio Eco de Moscovo, Nemtsov lembrou que durante os anos de governação Putin, nenhum partido de oposição foi registado e muitos foram fechados. “As autoridades cometeram um grande erro político. Agora o país e o mundo sabem que as nossas eleições são uma farsa”, rematou.
O mundo sabe, mas finge não saber.
No país, há quem recuse ser espectador nesta comédia política. Só que esses são silenciados. Aos poucos as cadeias russas vão-se enchendo de presos políticos. Em todos os meses que terminam a 31 há novas detenções. Um grupo de activistas instituiu o protesto para apoiar o artigo 31 da Constituição russa, que garante a liberdade de reunião. O protesto é proibido em muitas cidades russas, mas há quem fure o cerco e avance.
No dia 31 de Outubro, dezenas de manifestantes foram atirados para camiões e levados para as esquadras de polícia em Moscovo, S. Peterburgo e em Ekaterinburg, onde a repressão fez várias vítimas. Activistas políticos da quarta maior cidade russa conseguiram exilar-se, depois de há um ano, no dia das Bruxas, terem ousado um protesto original. Encenaram uma peça, apresentando Putin como o Conde Drácula, Medvedev como Frankenstein e com outras figuras do regime a fazerem de lobisomens e múmias. “O riso é a arma mais forte contra um ditador. Eles não o suportam”, justificou Evgeni Legedin que se encontra em Inglaterra à espera de receber asilo político.
Outros políticos conseguiram fugir. Muitos estão encarcerados, sem julgamento, enquanto Vladimir afina a pose para o seu regresso ao Kremlin. Olhar gélido, pose altiva em contraste com o sempre cabisbaixo Medvedev, mais figurante que protagonista.
No palco da política russa, o espaço é pequeno. Putin herdou da sua Petersburgo natal a mania das grandezas. Só que ao contrário de Pedro, o Grande (o czar que fundou a cidade em 1703 para servir de capital do Império), Putin não tem ceptro. E o império já lá vai, por mais que as luzes do palco brilhem.

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