terça-feira, 29 de novembro de 2011

À tona de água (crónica publicada no Novo Jornal)

No dia 28 de Novembro de 1987, às 14h23 (horário local), um avião das linhas áreas sul-africanas descola da capital de Taiwan, Taipei, com destino a Joanesburgo e escala nas Ilhas Maurícias, a leste de Madagáscar. O voo 295 da South African Airways (SAA) leva 159 pessoas a bordo e seis compartimentos cheios de carga.

Por volta das 23h35, ao largo das ilhas Maurícias, um incêndio no deck principal de carga deflagra. Em poucos minutos, o fumo alastra à cabine dos passageiros e dos pilotos e, às 23h49, a torre de controlo das Maurícias recebe um alerta do comandante, que já mostrava dificuldade em falar pela intensa nuvem negra.
Em terra, são desencadeados os procedimentos para auxiliar a aterragem do Boeing, mas em vão. O comandante ainda consegue informar a torre que o fogo destruiu os circuitos eléctricos fundamentais para operar o aparelho, o que deixa os pilotos com um controlo limitado das funções do avião. Depois de o piloto dar as coordenadas (erradas) da localização, o controlador autoriza a aterragem na pista 14 e pede ao comandante para comunicar quando o voo atingir os 5.000 pés. Esta informação já não chega. Ouvem-se gritos dos tripulantes, o alarme de fogo soa na cabine e… silêncio.
Envolta em chamas, a aeronave desmancha-se em grandes pedaços que caem sobre o Oceano Índico.
Uma equipa norte-americana especializada em recuperação de destroços no fundo do oceano consegue recuperar a quase totalidade dos destroços, mas o registo de dados do voo nunca foi encontrado.
À medida que a investigação decorre, os peritos depressa chegam a uma verdade alarmante.
Envolvido numa longa guerra com Angola, o governo sul-africano usava os aparelhos das linhas áreas nacionais para transportar armamento. Havia fortes suspeitas de que nas seis paletes de carga do voo 295 encontravam-se substâncias, altamente voláteis, usadas na fabricação de uma bomba-atómica. Só que as investigações nunca chegam a bom porto. As autoridades sul-africanas fecham-se em copas; recusam sempre prestar informações aos investigadores, alegando segredo de Estado; há suspeitas de que encontraram e destruíram o registo de dados de voo para impedir que os peritos cheguem à verdade e o relatório final limita-se a dizer: a tragédia do helderberg (como era conhecido o aparelho) foi determinada por um incêndio descontrolado, não detectado a tempo devido a falha no sistema de detecção de incêndios usado no 747 Combi, o que, aliado à desorientação dos tripulantes causada pelo fumo na cabine e a destruição da estrutura do avião, levou à queda da aeronave.
Para os familiares das vítimas a ocultação da verdade agrava um já de si pesado luto pelo sentimento de que os responsáveis por um acidente que podia ter sido evitado ficam impunes.
O acidente da South African Airways veio-me à memória a propósito da «terça-feira negra» na África do Sul (em alusão à iniciativa do «apartheid» de ilegalizar alguns jornais), esta semana, com a votação da controversa lei da protecção da informação, que desencadeou manifestações em todo o país.
Sobre esta iniciativa legislativa, que muitos consideram ser a “maior ameaça às liberdades civis desde a queda do regime do «apartheid» na África do Sul, não acrescento nada de novo ao que figuras destacadas do país já disseram.
Limito-me a lembrar que o Nobel da Paz e arcebispo emérito Desmond Tutu qualificou a proposta “defeituosa” e afirmou que “é um insulto pedir aos sul-africanos que digiram uma lei que criminaliza os informadores dos jornalistas e criminaliza os próprios órgãos de informação, e que obriga o Estado a responder apenas perante o Estado”.
A Nobel da Literatura Nadine Gordimer alertou para a “enorme ameaça às liberdades que esta lei constitui” e acusou o ANC de estar a tentar “um retrocesso muito para além dos tempos do «apartheid»”, argumentando que “muita gente lutou e morreu pelo direito a uma vida melhor, que poderá ser posta em causa pelo nepotismo e pela corrupção”.
E o Centro Nelson Mandela para a Memória criticou a lei, que prevê penas entre cinco a 25 anos para quem publique informação classificada pelo Estado, alegadamente em nome da segurança do Estado, dizendo que ela “não vai ao encontro dos objectivos sul-africanos relativamente à liberdade de expressão”.
Resta-me dizer que os cidadãos têm direito a saber a verdade, qualquer que ela seja. E que fechá-la a sete chaves ou pôr grilhetas em quem a pretende revelar não é suficiente para impedir que ela seja conhecida.
Exemplos que o demonstrem não faltam. Mesmos nos regimes mais fechados, a verdade acaba sempre por vir à tona de água.

Sem comentários:

Enviar um comentário