Uma menina, de dois anos, caminha pela estrada. Distraída, vira costas a um furgão que se aproxima.
O veículo bate na criança, projectando-a para o chão, e passa com as duas rodas por cima do corpo da pequena, que fica estendido a sangrar.
No espaço de três minutos, 18 pessoas passam pela criança e ignoram-na.
Primeiro passa um homem, vira a cara, contorna a garota e segue.
Depois, um jovem de mota aproxima-se, desvia o motociclo e continua viagem.
Outro homem caminha em direcção à menina, atravessa a estrada, lança um olhar indiferente e segue.
Uma carrinha aproxima-se, passa com as duas rodas por cima das pernas da criança; a menina esperneia, o veículo desaparece do visor.
Passa uma moto com atrelado, desvia-se e continua viagem.
Em sentido contrário, outro motociclo com reboque passa.
Uma bicicleta com reboque vem na direcção da criança, desvia-se e segue.
Uma moto passa, em sentido contrário.
Uma mulher com um menino pela mão caminha, lança um olhar fortuito e continua.
Uma moto passa.
Uma mulher, carregando sacos de lixo aproxima-se, olha para a criança, pousa os sacos, abeira-se dela, enquanto uma moto passa indiferente. A mulher grita por ajuda, um camião aproxima-se sem qualquer sinal de que vai parar. A mulher desvia a criança do pesado. Outra mulher chega, pegam na pequena e saem com ela nos braços.
A pequena Wang Yueyue morreu há duas semanas, consequência da “apatia social” que deixou a sangrar na rua uma criança, depois de ter sido atropelada em Foshan, no sul da China, província de Cantão.
As imagens exibidas na internet e por várias estações de televisão suscitaram uma onda de indignação e duros comentários acerca do egoísmo e da crise moral da sociedade chinesa
Milhares de chineses participaram em manifestações, reclamando maior consciência social e prudência na condução, como se lia nos cartazes empunhados em Cantão, a capital da província de Guangdong, onde a concentração reuniu mais de 10 mil pessoas com fotografias da pequena Wang Yueyeu.
Os jornais nacionais afinaram pelo tom da indignação. O Global Times, jornal de língua inglesa do grupo do Diário do Povo, órgão central do Partido Comunista Chinês, escreveu que o comportamento daqueles 18 transeuntes “ultrapassou os limites da moral” e denunciou a existência de uma “decadência moral na sociedade”.
"Não somos inocentes. Nós somos uma daquelas 18 pessoas sem coração porque a tragédia que aconteceu em Foshan não é um acaso, ela reflecte um declínio moral que se tornou uma realidade incontestável e da qual somos todos responsáveis", comentou um dos mais populares jornais de Cantão.
As imagens da pequena Wang Yueyeu trazem-me à memória o livro biográfico de Zhu Xiao-Mei - «O Rio e o seu segredo» - a exímia pianista chinesa que foi proibida de tocar, durante a Revolução Cultural de Mao Tse-Tsung, num processo que destruiu a sua família e quase a destruiu como ser humano.
Proveniente da classe média alta – o pai era médico (foi proibido de exercer), a mãe artista – Xiao-Mei viu-se obrigada a repudiar a família, a delatar amigos por serem “maus revolucionários” (alguns suicidaram-se) e a anular-se como ser humano em nome de uma revolução que “matou fisicamente milhões de pessoas, e moralmente centenas de milhões de outras”.
“A Revolução Cultural sujou-me, fez de mim culpada. A certo momento, matou mesmo em mim o sentido de moral. Critiquei os meus semelhantes, desprezei-os, acusei-os de ofensas graves, inquiri o seu passado, tomei parte activamente num processo de destruição colectiva. Como apagar esta nódoa?”, questiona a pianista no livro, que serve como uma catarse do passado que “nunca pára” de a assombrar. “De certa maneira, saí da prisão para me ver agora prisioneira de mim própria”, explica.
Xiao-Mei acusa Mao de ser o responsável pelo aniquilamento moral e cultural da China. “As suas análises a priori não eram falsas (..) Era preciso libertar o povo chinês”, mas Mao Zedong “praticou por laxismo uma fuga para a frente por não ter a coragem de reconhecer os seus erros”.
Mas o problema da China, segundo a autora, não se ficou pela Revolução Cultural. O desconhecimento sobre o ”desastre dos anos de Mao”, a pobreza social e moral extrema a que se chegou nesse período e a “ausência de julgamento” colocou os chineses perante uma indiferença que transformou o seu sentido de humanidade.
Os dois condutores que atropelaram Wang Yueyeu foram detidos. Mas isso não chega para apagar da memória as imagens da menina a agonizar.
Sem comentários:
Enviar um comentário