segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Redimido (crónica publicada no Novo Jornal)

Duas histórias sobressaem nas notícias da última semana. Ambas são insólitas, demonstram a hipocrisia vigente e revelam como a justiça tem de ser aplicada com critério e razoabilidade. Um dos homens mais procurados pelo FBI foi apanhado em Portugal, onde vivia há vários anos sem levantar a mínima suspeita. George Wright, que ostentava um bilhete de identidade português, foi traído pela saudade.
Um telefonema para um familiar, nos EUA, de onde fugira há 41 anos, pôs as autoridades policiais no seu encalço. No espaço de dias, a mulher portuguesa e os seus dois filhos, de 24 e 27 anos, descobriram que afinal José Luís Jorge Santos, como consta no BI português, era um dos homens mais procurados dos EUA.
O anti-herói convertido em herói. Cena de filme, pois!
Wright foi condenado em 1962 pelo homicídio de Walter Patterson, um veterano da II Guerra Mundial, durante um assalto a uma bomba de gasolina. Foi condenado a uma pena de entre 15 a 30 anos de prisão. Não ficou muito tempo na cadeia.
Em 1970, foge da prisão de Bayside State, em New Jersey, com outros três detidos, num carro roubado a um dos guardas. Em Detroit, junta-se aos Black Liberation Army, uma organização negra radical, que integra alguns antigos activistas dos Panteras Negras, e que defendia a libertação armada dos negros norte-americanos.
Dois anos depois, a 31 de Julho de 1972, vestido de padre e com uma arma escondida dentro de uma Bíblia, embarca num voo da Delta Airlines para Miami, juntamente com outros membros do Exército de Libertação Negra. Fazem reféns 88 passageiros, num dos mais ousados sequestros da história dos EUA e um dos mais humilhantes para o FBI, assim o qualificou a imprensa norte-americana.
O grupo exige um milhão de dólares e obriga os agentes a entregar o dinheiro em fato de banho para evitar que trouxessem armas escondidas. Os passageiros são libertados e os sequestradores seguem com a tripulação para Argélia. O aparelho e os dólares são apreendidos pelas autoridades argelinas. Depois de uns dias no cárcere, os piratas conseguem fugir. Uns são apanhados em França, quatro anos depois; Wrigt refugia-se na Guiné-Bissau.
Aos 68 anos, George Wright enfrenta a ameaça de extradição para os EUA, a que se opõe, e o regresso à prisão para cumprir o resto da pena.
Se a justiça tem como meta a recuperação do indivíduo, a história de José Luís mostra que está recuperado. Na Guiné-Bissau, Jack ou simplesmente o americano, treinou basquetebol e semeou simpatia. Em Portugal constituiu família, tinha um emprego estável e estava bem integrado na sociedade. Os seus crimes da juventude deviam expirar. Com o seu percurso nas últimas quatro décadas, Jorge ou George é um homem redimido.
Na Arábia Saudita, o regime do Rei Abdullah anunciou que as mulheres vão poder votar e ser eleitas. E que vão passar a integrar a Shura, o conselho consultivo do rei, uma espécie de parlamento. Esta extensão da Primavera Árabe é tímida, mas tem um peso simbólico importante. A Arábia Saudita é o país mais restritivo dos direitos das mulheres e a abertura agora consagrada pelo rei Abdullah é o seguimento da linha reformista que tem adoptado desde que ocupa o cargo, em 2005.
Mais importante do que votar, as activistas sauditas encaram como realmente inovador o facto de a monarquia saudita permitir a entrada de mulheres na Shura. É ali que são propostas e vetadas leis e é ali que é importante ter mulheres para levarem as propostas que traduzem as suas preocupações, como destaca Reem Assad, professora universitária e colunista em vários jornais do reino.
O facto de a reforma eleitoral ter sido anunciada pelo monarca na Shura, no seu discurso anual, tem também um significado emblemático, porque é ali que têm acento os principais guardiões da ortodoxia saudita e que fazem com que as mulheres do reino só agora, quase 50 anos depois das egípcias e cinco anos depois das cidadãs dos Emirados Estado Unidos, tenham direito a voto.
É certo que, só em 2015, é que as sauditas vão poder pôr em prática esse novo direito, nas eleições municipais, as únicas que existem no país. Mas a abertura do actual monarca é um caminho para quebrar outros grilhões.
O reino ultraconservador de Abdullah é o único país do mundo que proíbe as mulheres de conduzir. Shaima Jastaina foi condenada na segunda-feira a 10 chicotadas por ter sido apanhada ao volante. A decisão arrefeceu o entusiasmo da reforma anunciada, mas, num gesto sem precedentes, o rei Abdullah anulou a sentença do tribunal, acelerou as manobras para a liberdade de movimentos das mulheres e está a caminho da redenção. 

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