No seu livro «O Caderno Grande», o primeiro de uma trilogia que Agota Kristof dedica às ex-sociedades totalitárias do leste europeu e à sua passagem para sociedades consideradas “livres”, a autora Húngara apresenta-nos um par de gémeos e o crescimento destas figuras centrais dos três romances junto da avó materna, desprovidos de tudo o que faz parte da vida das crianças e pré-adolescentes.
Privados do afecto materno, desde que a mãe os entregou à avó - figura somítica e desapossada de sentimentos, suspeita de ter assassinado o próprio marido - os gémeos foram afastados dos bombardeamentos da “Cidade Grande” e da fome e encontram no campo um ambiente armadilhado que distorce a natureza humana ao ponto de os tornar imunes às maiores atrocidades.
O quintal da casa da avó na Cidade Pequena está cheio de animais domésticos e legumes, que são vendidos; na boca dos miúdos entram apenas migalhas e restos. A casa tem um quarto, onde “só a avó é que entra, à noite, para dormir”; tem outro quarto, que é ocupado por um oficial estrangeiro; por “baixo da casa há uma cave cheia de coisas para comer; sob o telhado, há um sótão, onde os miúdos escondem o Caderno Grande, o dicionário do pai e outros objectos que são obrigados a ocultar. Há ainda uma cozinha, “grande e quente”. Perto da janela há um banco, é nele que dormem.
A avó desvia o dinheiro e as cartas que a mãe manda para os gémeos, não lava a roupa dos miúdos, nem as passaja e, aos poucos, vão ficando velhas e esburacadas. Os irmãos trabalham arduamente no campo, não vão à escola e formam-se na dureza da vida e dos sentimentos, enquanto a guerra dura neste recanto, junto à fronteira minada que impede a passagem para o outro lado, o da liberdade.
Na casa da avó, os gémeos improvisam uma escola, com o dicionário do pai e a Bíblia que encontraram em casa da avó, no sótão. Têm lições de ortografia, de composição, de leitura, de cálculo mental, de matemática e exercícios de memória.
O dicionário serve para a “ortografia e para obter explicações, mas também para aprender palavras novas, sinónimos e antónimos”. A Bíblia serve para a “leitura em voz alta, para os ditados e para os exercícios de memória”.
A metodologia de aprendizagem é fácil. Os gémeos sentam-se à mesa da cozinha com as suas folhas quadriculadas, os seus lápis e o Caderno Grande. Um deles diz: “O título da tua composição é: A chegada a casa da Avó”. O outro diz: “O título da tua composição é: Os nossos trabalhos”. Põem-se a escrever. Têm “duas horas para tratar o assunto e duas folhas de papel” à disposição.
Ao fim das duas horas trocam as folhas. Cada um corrige os erros de ortografia do outro com a ajuda do dicionário e, “ao fundo da página, escreve «Bem» ou «Mal»”. Se for Mal, atiram a composição para o fogo e tentam tratar o mesmo assunto na lição seguinte. Se for Bem, podem copiar a composição para o Caderno Grande.
Para decidirem se é Bem ou Mal, os gémeos têm “uma regra muito simples: a composição deve ser verdadeira”. Devem descrever o que existe, o que vêem, o que ouvem o que fazem.
“Por exemplo, é proibido escrever: «A avó parece uma bruxa»; mas é permitido escrever: «As pessoas chamam à avó a Bruxa».
“É proibido escrever: «A Cidade Pequena é bonita», porque a Cidade Pequena pode ser bonita para nós e feia para outra pessoa”.
“Escreveremos: «Comemos muitas nozes», e não: «Gostamos de nozes», porque a palavra gostar não é uma palavra segura, falta-lhe precisão e objectividade. Gostar de nozes e gostar da nossa mãe não pode querer dizer a mesma coisa. A primeira fórmula designa um gosto agradável na boca e a segunda um sentimento”.
“As palavras que definem os sentimentos são muito vagas; mais vale evitar a sua utilização e limitarmo-nos à descrição dos objectos, dos seres humanos e de nós próprios, quer dizer à descrição fiel dos factos”.
Esta lição dos gémeos da trilogia da escritora húngara reflecte o absurdo da natureza humana quando os indivíduos são sujeitos à violência extrema e gratuita - qual não é? –, à falta de referências afectivas e culturais. E ao caos emocional da desordem provocada pelas guerras e ódios, quer sejam étnicos, religiosos, raciais ou culturais.
As demonstrações de júbilo pela notícia da morte de Muammar Khadafi e as imagens da violência praticada sobre o cadáver do ex-líder líbio são a exibição pública do que Agota Kristof, falecida este ano, tão bem retrata. A celebração da morte de alguém é, na sua essência, grotesca. Assim como o é a vida desprovida de sentimentos.
Que análise acurada e sensível, grande postagem!
ResponderEliminarObrigado pelo seu comentário. É bom acolhê-lo nesta minha, e agora também sua, casa.
ResponderEliminarIsabel