Foi a vitória mais política da noite – não foi a mais celebrada, essa pertenceu ao filme francês «O Artista», que arrebatou cinco dos 10 Óscares para que estava nomeado - embora o realizador Asghar Farhadi tenha recusado interpretações políticas na atribuição do prémio para melhor filme estrangeiro a «Uma Separação».
Num discurso emocionado e dirigido ao povo iraniano que “respeita todas as culturas e civilizações e despreza a hostilidade e o ressentimento”, Farhadi acabou por fazer o discurso mais político da noite dos Óscares, transmitida na madrugada de domingo.
O povo iraniano, que apesar da hora tardia assistiu à atribuição do primeiro Óscar ao cinema nacional, rejubilou. Os principais media apressaram-se a dar amplo destaque ao prémio. E o governo tratou de usar o trunfo contra Israel, que tinha em competição na mesma categoria o filme «Footnote», de Joseph Cedar.
A atribuição do Óscar a «Uma separação» não pode ser reduzida à sua dimensão política; é um prémio que distingue a filmografia de Farhadi e a cinematografia iraniana que, nos últimos anos, tem conquistado galardões em festivais internacionais em todo o mundo.
Mas essa dimensão também não pode ser escamoteada, numa altura em que o regime aperta o cerco aos realizadores iranianos (o próprio Asghar Farhadi viu as filmagens de «Uma Separação» serem suspensas no Outono de 2010 por intervenções a favor de cineastas detidos ou proibidos de filmar por acusações de hostilidade para com o regime islâmico).
O próprio discurso de vitória de Asghar alude ao actual isolamento do Irão por causa do seu programa nuclear. “Neste momento, muitos iranianos em todo o mundo estão a observar-nos e eu imagino que eles estejam muito felizes, não só por causa de um prémio importante ou um filme ou um cineasta, mas porque no momento em que os políticos trocam discursos de guerra, intimidação e agressão, o nome do país, o Irão, é falado aqui pela sua cultura gloriosa, uma cultura rica e antiga que ficou escondida sob a poeira pesada da política“.
Faltou no discurso do realizador uma palavra crítica para o interior do seu país. Para o regime que, desde a Revolução Islâmica do aiatola Khomeini, em 1979, refreou o ímpeto progressista da cultura Persa, que fez com que a sétima arte tenha chegado ao país, em 1900, cinco anos depois do seu surgimento. E que hoje tem um conjunto de realizadores que são presença frequente em festivais de cinema internacional.
Abbas Kiarostami (o mais premiado), Samira Makhamalbaf, Mani Haghigh, Jafar Panahi, Majid Majid e Asghar Farhadi têm levado às salas de mundo inteiro a sua visão da cultura e sociedade iraniana, destacando-se, no caso de Kiarostami, uma nova visão da mulher iraniana contemporânea, que encontra eco neste «Uma Separação», cuja protagonista pede o divórcio ao marido porque quer sair do país.
É o próprio Asghar que chama a atenção para o “papel importante” que as mulheres vão jogar no futuro do país, ao contrário do que as pessoas possam pensar sobre o Irão: “Pensa-se que elas se habituam rapidamente aos condicionalismos que lhes são impostos, mas acho o contrário: serão elas a mudar as condições de vida no Irão”.
O cinema iraniano tem feito o circuito dos festivais internacionais, mas raramente chega às salas do país. Os filmes dos realizadores desafectos ao regime, nos quais se inclui Kiarostami, acabam por ser adquiridos em DVD no mercado negro. E circulam livremente, na clandestinidade. Como aconteceu com a última película de Jafar Pahani, que esteve preso e foi proibido de filmar durante 20 anos por ter participado nos protestos públicos, em 2009, contra a reeleição de Mahmud Ahmadinejad.
Pahani, que começou a carreira como assistente de Kiarostami, filmou o seu dia-a-dia em prisão domiciliária, onde cumpre uma sentença de seis anos, com a ajuda do cineasta Mojtaba Mirtahmasb.
Gravou as imagens de «Isto não é um filme» numa pen-drive, que chegou a Paris, França, dentro de um bolo e, através desta espécie de documentário, o mundo pôde conhecer a rotina do realizador iraniano.
A atribuição do Óscar a «Uma Separação» tem, neste contexto, uma dimensão política importante.
A tentativa de colher frutos com o prémio é um sinal de hipocrisia do regime de Ahmadinejad. E do despudor com que trata a cultura do seu país.
O esforço de Asghar Farhadi (que neste filme retrata a experiência de uma mulher que não quer educar a sua filha no Irão) de recusar ver o prémio por um ângulo político é em vão.
Porque, embora não neguem o seu valor artístico, muitos o vêem assim.
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