segunda-feira, 9 de abril de 2012

A Dama de Bambu (crónica publicada no Novo Jornal)

Após uma longa travessia no deserto, Aung San Suu Kyi foi eleita, com um resultado esmagador, nas eleições intercalares de domingo para o Parlamento Federal birmanês. De nada valeram as manobras das autoridades de Nyanmar, antiga Birmânia, para boicotar a candidatura da líder da oposição, como a censura ao seu discurso eleitoral transmitido na televisão e rádio.
O partido de Aung San, a Liga Nacional para a Democracia (LND), ganhou 43 dos 44 lugares de deputados a que concorreu e ela própria foi eleita com 99 por cento dos votos, na circunscrição pela qual se candidatou.
Apenas um lugar, ao qual o NLD não apresentou candidato, foi conquistado pelo Partido da União, da Solidariedade e do Desenvolvimento (fiel aos militares), o que dá bem a noção de como os birmaneses estão massivamente com a mulher que, nas últimas duas décadas, se tornou na heroína incontestada do seu povo. E numa das líderes mais influentes do mundo.
O partido de Suu Kyi obteve um resultado mais expressivo do que aquele que foi alcançado nas eleições gerais de 1990, quando venceu com 59 por cento dos votos. A junta militar, que governou o país até 2010, reagiu então à vitória, decretando a prisão domiciliária de Aung San Suu Kyi, depois de ela recusar o exílio. Uma pena que se prolongou, intercaladamente, por 15 longos anos.
Com um parlamento formado por 650 deputados, os 44 lugares conquistados pelo LND no domingo não representam ainda uma ameaça ao governo fiel aos militares, nem às Forças Armadas, que têm direito a 25 por cento dos lugares, de acordo com a Constituição. Mas é um sinal do poder da «Dama de Bambu».
“Desde o início da campanha eleitoral era evidente o amor das pessoas por Aung San Suu Kyi. Sabia-se que se as eleições fossem livres e justas, este teria sido o resultado”, afirmou à agência AsiaNews, o arcebispo de Mandalay, Dom Paul Zingting Grawng, acrescentando: “O povo alimenta muita esperança nesta mulher”.
O tempo é de optimismo, mas também de receio.
O presidente de Nyanmar, Thein Sein, garantiu que o governo vai aceitar os resultados, mas a memória das eleições de 1990 ainda está fresca, e os líderes religiosos temem manobras que desrespeitem a vontade popular, como há duas décadas.
No cinzentismo da política internacional, onde emergem poucos líderes carismáticos (Nelson Mandela foi o último), o brilho de Aung San Suu Kyi é impossível de ofuscar.
Filha de Aung San, herói nacional da independência da Birmânia, assassinado quando ela tinha dois anos, Suu Kyi regressa ao seu país em 1988, para despedir-se da mãe, e é apanhada no meio de uma revolta popular contra os 26 anos de repressão política.
É com mão de ferro que o general Ne Win, que dirigia a ditadura, responde à revolta popular. Dez mil pessoas morrem numa das mais brutais acções de repressão a um movimento pacífico, bem documentada no filme «Beyond Rangoon» (Para Além de Rangoom), de John Boorman.
O perfil pacifista e determinado de San Suu Kyin fazem-na emergir como a grande esperança para o seu povo. Reivindica a convocação de eleições livres e ajuda a fundar a LND, partido que vence as eleições de 1990. Conquista 392 dos 489 assentos da Assembleia Popular, mas os deputados não chegam a assumir os lugares. Os militares anulam o resultado da eleição e aferrolham Aung San Suu Kyi.
A reacção da comunidade internacional tem expressão nesse mesmo ano com a atribuição do Prémio Sakharov de liberdade de pensamento a Suu Kyi (o primeiro de muitos). Em 1991, é galardoada com o Prémio Nobel da Paz. A prisão domiciliária impede-a de comparecer à cerimónia de entrega do prémio. É representada pelo marido, o britânico Michael Aris, que se torna embaixador da causa birmanesa, quase abdicando da sua carreira de escritor, e pelos dois filhos, Alexander e Kim.
Nada volta a ser como antes. As atenções do mundo convergem para o exemplo daquela mulher com aparência frágil e olhar doce que é um exemplo de tenacidade e determinação, que nunca se vergou perante o poder musculado de Rangum.
A determinação de Aung é retratada no filme de Luc Besson «The Lady», de 2011, que foca a história pessoal desta heroína dos séculos 20 e 21, que se viu privada da família para lutar pelo seu povo.
Temendo que, ao sair da Birmânia fosse impedida de regressar, Suu Kyi viu os filhos crescer sem os poder abraçar e não pôde despedir-se do marido, quando ele morreu de cancro em 1999. Michael ainda tentou obter um visto para se juntar à mulher em Nyanmar, mas o pedido foi recusado, e Aung aceitou a privação por uma causa maior: a de um país que lhe retribuiu no domingo na justa medida do seu sacrifício.

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