segunda-feira, 2 de abril de 2012

Vida sem borracha (crónica publicada no Novo Jornal)

Viveu com traço forte e sem usar a borracha para eliminar borrões. Até ao último momento. Millôr Fernandes morreu terça-feira, aos 88 anos, deixando um legado que não tem paralelo no Brasil. E que começou cedo.
Cedo Millôr Fernandes enfrentou a vida como os toureiros lidam o touro. Pegando-lhe de frente.
Com um ano, perde o pai; com apenas 10, a mãe morre e conhece aí as agruras. Vê o “bife ser posto no prato dos primos, sem que o órfão tivesse direito”. Nos três anos seguintes, a família dispersa os quatro irmãos cada um para seu lado, tentando sobreviver. É ele que o recorda, com crueza, mas sem amargura.
“Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia. Mas o sentimento foi de paz, que durou para sempre, com relação à religião: a paz da descrença”, escreveu na sua biografia.
A descrença apurou-lhe os sentidos, aguçou-lhe o génio, deu firmeza ao seu traço, sagacidade ao olhar e profundidade ao ser.
Millôr foi grande e diverso: jornalista (carreira que começou aos 14 anos), escritor, ilustrador, dramaturgo, poeta, argumentista, tradutor e inventor de frescobol (uma espécie de ténis de praia a que se dedicava nas horas livres). Por todas estas actividades perpassa um humor único, que o tornou persona non grata de quase todos os governos, com excepção do do general Dutra, como confessou nos anos 80.
Foi temido, mas nunca temeu. O único travão foi a morte que o apanhou, na terça-feira.
A certeza da finitude, com a morte dos pais, chegou-lhe cedo e deu-lhe um sentimento de urgência, sempre presente. “Esta é a verdade: a vida começa quando a gente compreende que ela não dura sempre”, escreveu, resumindo essa necessidade de compromisso com a vida noutra das suas frases emblemáticas: “Viver é desenhar sem borracha”.
O destino de Millôr como humorista, uma das principais marcas do seu carácter, foi precoce. E mergulha nas nuances fonéticas que tornam a língua um organismo vivo capaz de pregar partidas, como a que lhe mudou o nome.
Quando a família o registou no cartório, o escrivão percebeu mal e, em vez de Milton Fernandes, registou a criança como Millôr Fernandes.
A singularidade do seu percurso começou aí, mas só aos 17 anos descobre que o seu nome é Millôr. “Acho bom, não mudo, e o nome logo pega”. Pegou.
Com um nome próprio único no mundo, Millôr recuava a esse acontecimento identitário com graça. A mesma que usava quando se referia à incerteza sobre a sua data de nascimento.
“Nascido Milton Fernandes, no Meyer, em 16 de agosto. Ou em 27 de maio? Ou em 27 de maio do ano anterior? Há desencontros de opinião na família. Na carteira de identidade: 27-05-1924. Meu amigo, Frederico Chateubriand, sempre repetia, quando se falava que alguém estava “muito moço”, isto é, aparentava menos que a idade que tinha: “Idade é a da carteira”. (…) No meu caso talvez a carteira esteja (um pouquinho) a meu favor”.
Vários equívocos fundadores, embora Millôr nunca tenha sido um equívoco. Foi sempre frontal, usando o olhar como uma lupa desferida sobre as incongruências, os oportunismo e as contradições da natureza humana.
Era difícil rotulá-lo, como assumiu o escritor, jornalista e cronista do jornal «O Globo», Joaquim Ferreira dos Santos, citado pelo diário português «Público».
“Humorista seria pouco, filósofo – ele seria o primeiro a dar uma gargalhada na pretensão. Vou no simples. Um génio pensando a humanidade enquanto dava raquetadas de frescobol em Ipanema”, sintetizou.
A carreira jornalística de Millôr começa na revista «O Cruzeiro», que “um grupo de meninos”, no qual ele se incluía, levaria “dos estagnados 11.000 exemplares tradicionais a 750.000 mil”.
O sucesso de «O Cruzeiro» faz os jornalistas “virarem notícia”. Começa a viajar dentro e fora do país, expande-se, alarga os seus conhecimentos, sedimenta a fama de intelectual, dentro e fora do Brasil. Passa pelo «Pasquim», jornal que desempenhou um papel importante de oposição ao regime militar, e pelo «Jornal do Brasil». Colabora com a revista «Veja» e é um dos criadores do jornal «O Pif-Paf» que, apesar das escassas oito edições publicadas, é considerado um marco no arranque da imprensa alternativa no Brasil.
Autor de mais de 50 livros, de centenas de tiras de humor e um número impressionante de pensamentos famosos, Millôr viveu em permanente inconformismo. Em 2000 lançou o seu site «Millôr Online», que hoje, ao abrir, nos confronta com uma fotografia única de uns óculos pousados sobre uma folha em branco.
O seu olhar descansa, desde terça-feira, 27 de Março.

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