Inconformada, a jovem apresentou queixa. Os polícias foram detidos e a vítima de violação foi chamada a tribunal, há uma semana.
Só que, ao contrário do que seria de supor, a jovem não foi chamada para testemunhar sobre a agressão sexual. De vítima, passou a acusada. O Tribunal de Tunes abriu um processo contra ela por “atentado ao pudor”, alegando, com base no testemunho dos agressores, que a jovem foi surpreendida pela polícia numa posição “imoral” com um amigo na sua viatura.
De tão escabroso, o caso está a provocar indignação internacional.
O ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Philippe Lalliot, veio a público dizer que segue o caso com “grande atenção” e que espera que as acusações de “atentado ao pudor” contra a jovem tunisina sejam abandonadas.
As declarações do representante da diplomacia francesa desencadearam, por seu turno, uma reacção do governo da Tunísia. O ministro da Justiça tunisino defendeu, na quarta-feira, o processo contra a jovem violada e acusou alguns media de prejudicarem a imagem do país.
O ministro Noureddine Bhiri admite que a violação da rapariga “é horrível”, mas não perdoa aos media o facto de a vítima estar a ser “transformada em acusada” e, com isso, estarem a “prejudicar a imagem da Tunísia e da justiça”.
Ora, vamos por partes:
Segundo o ministro da Justiça tunisino, o facto de a jovem ter sido violada por polícias que estavam de serviço é uma coisa, assim, aborrecida; mas tem, como atenuante, o facto de a rapariga ter sido surpreendida numa posição “imoral”, que é causa directa do empolamento da líbido dos agentes.
Portanto, em síntese: o crime cometido pelos polícias está, segundo Bhri, justificado. O da jovem violada é que não e, portanto, terá de responder perante a justiça.
Este caso, kafkiano, é tanto chocante, como revelador. Ele revela uma forma de pensar que não é exclusiva dos países árabes, de influência muçulmana, como é o caso da Tunísia que, apesar de ter despoletado a Primavera política no mundo árabe, ainda não assiste a um florir cultural, nem social.
Ou como o Afeganistão, onde uma mulher violada é presa ou assassinada pela família, a não ser que case com o violador, como aconteceu à jovem Gulnaz, violada pelo marido de uma prima. A violação foi descoberta quando o ventre da rapariga, condenada a 12 anos de prisão, começou a crescer. Gulnaz, que esteve dois anos presa com a filha bebé, foi libertada após consentir unir-se ao agressor, num casamento “abençoado” pelo próprio Presidente afegão, Hamid Karzai, em Janeiro de 2011.
Em 2009, Silvio Berlusconi, o então primeiro-ministro italiano, surpreendeu o mundo ao reagir a uma onda de violações na Sardenha com comentários indignos. Pressionado a tomar medidas, Berlusconi afirmou que para pôr termo às violações “seria preciso colocar nas ruas um soldado para cada mulher bonita”, como se a condição de ser bela justificasse a acto de agressão sexual.
O comentário do ex-chefe de governo de Itália está ao nível da observação boçal, “estás mesmo a pedi-las”, com que são mimoseadas algumas mulheres que se “atrevem” a vestir uma minissaia.
Mais recentemente, Ricardo Patio, ministro dos Negócios Estrangeiros do Equador, país que concedeu asilo político ao fundador da WikiLeaks, disse que os crimes (violação e agressão sexual) de que é acusado Julian Assange na Suécia não são, em muitos países, considerados crimes.
Outra pérola na mesma linha de raciocínio é a que foi proferida por um congressista norte-americano, em Agosto último.
Todd Akin, candidato ao Senado dos EUA e um acérrimo defensor anti-aborto, disse, durante uma entrevista, que em caso de violação “o corpo da mulher tem formas” de evitar uma gravidez.
O congressista, que foi forçado a retirar a candidatura face ao coro de críticas, não se ficou por aqui. “Parece-me, pelo que sei dos médicos, que isso (engravidar) é muito raro. Se for uma legítima violação, o corpo da mulher tem formas de tentar resolver essa questão”, afirmou Todd, qualificando o acto de violar como “legítimo”.
A afirmação escandalosa obrigou Barack Obama, Presidente dos EUA (país onde se estima que anualmente mais de 600 mil mulheres são violadas e 200 mil crianças são abusadas sexualmente) a vir a público dizer aquilo que devia ser óbvio em qualquer país do mundo: “Uma violação é uma violação”. E, portanto, deve ser criminalmente punida.
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