segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Violações II (crónica publicada no Novo Jornal)

Nem de propósito. Escrevi há uma semana que há um despeito pela condição feminina, que leva a que em muitos países a violação seja vista como um crime menor. E que o acto até possa ser caricaturado e alvo de piada, como fez na segunda-feira um alto dirigente de um organismo espanhol.

José Manuel Castelao acabou por pagar o preço da infâmia. Apresentou a demissão pouco depois do infeliz ‘chiste’, mas insistiu em mistificar a causa da renúncia, como se fosse possível sair de forma airosa depois de afirmar que as “leis são como as mulheres, existem para ser violadas”.
Volto ao assunto pelo espanto que causa o facto de um alto responsável nomeado por um governo não conseguir perceber a impertinência deste tipo de comentário e, com isso, estar a contribuir para um sentimento de misoginia (crença na inferioridade da mulher) que se perpetua.
Houve quem o tentasse defender, dizendo que a frase foi retirada do contexto. Mas não há enquadramento que justifique semelhante pérola.
José Manuel Castelao tinha acabado de tomar posse como presidente do Conselho Geral da Cidadania no Exterior, quando numa reunião daquele órgão consultivo do Ministério do Emprego se rasteirou a ele próprio.
Segundo o jornal «El País», Castelao referia-se à acta de uma das comissões daquele organismo, e para a qual faltava um voto, quando apresentou uma solução legalmente elástica: “Não há problema. Há nove votos? Põe dez. As leis são como as mulheres, existem para ser violadas”.
O incómodo inicial resvalou para a polémica. Ana María Navarro, membro do conselho pela Venezuela, foi a voz da estupefação. “Foi uma frase absurda e infeliz, para mais vinda de uma pessoa como ele, que é presidente de um organismo”.
Castelao acabou por vir a público pedir desculpas, depois de vários conselheiros solicitarem que o fizesse, expressando o seu “lamento” profundo por ter construído um edifício que lhe caiu em cima. Palavras suas.
Apesar de esmagado pelas críticas, Castelao recusou estabelecer uma ligação entre a sua saída e a frase fatal, apresentando “motivos pessoais”. Uma razão convincente tendo em conta a vergonha que cai sobre um dirigente que profere um comentário digno de qualquer antologia de frase grosseiras.
Noutro ponto do globo, os atentados contra as mulheres tiveram esta semana uma manifestação exemplar de como não se pode ficar impávido a assistir à desumanização das mulheres, que faz lei nalguns países.
Uma adolescente, que se tornou internacionalmente conhecida aos 11 anos como activista e defensora da educação das raparigas e mulheres no Paquistão, foi baleada terça-feira por rebeldes talibãs, num ataque que feriu outras duas jovens.
Malala Yousafzai, de 14 anos, saía da escola, na região do vale do Swat, quando foi atingida com um tiro na cabeça e outro na zona pescoço-ombro. Os médicos que a operaram conseguiram remover as balas, mas o seu prognóstico continua reservado. Uma das balas afectou certas zonas do cérebro e não aconselha a transferência da menina para um hospital no estrangeiro, permanecendo no hospital de Peshawar, até que possa ser evacuada para o Reino Unido ou o Dubai.
O atentado foi reivindicado pelos talibãs, que consideram a adolescente como um símbolo de desafio às suas regras de comportamento e afirmam que a defesa que faz do direito à educação para as mulheres constitui uma “obscenidade”.
Os talibãs garantem mesmo que, se Malala sobreviver, vão voltar a atentar contra a sua vida.
Malala Yousafzai tornou-se conhecida em 2009, quando começou a escrever um blogue para a BBC, onde, sob o pseudónimo de Gul Makai, criticava a violência talibã e defendia a educação das raparigas no Paquistão.
No site, a menina contava as suas experiências e a sua vida em Swat, uma região conquistada dois anos antes pelo exército talibã, onde o seu pai, Ziaudduin Yousafzai, geria uma das únicas escolas destinadas a educar as raparigas na zona que sobreviveu à repressão.
A visibilidade que conquistou valeu a Malala a nomeação para o Prémio Internacional da Paz para as Crianças da fundação holandesa Kids Rights. E no ano passado recebeu o primeiro prémio para a paz criado pelo governo paquistanês.
Na quarta-feira, o governo provincial ofereceu uma recompensa de 10 milhões de rupias (104 mil dólares) por informações que levem à captura dos atacantes de Malala. Mas isto só não chega.
É preciso que o governo central seja incondescendente com os atentados à vida e comece por travar o avanço da influência dos Talibãs no Paquistão.
Precisamente o contrário daquilo que tem feito até aqui.

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