quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Apagar as mulheres (crónica publicada no Novo Jornal)

A Arábia Saudita, um dos países mais restritivos do mundo, não pára de impressionar.
Não bastava ser o único território do mundo onde as mulheres são proibidas de conduzir, é agora o único Estado que monitoriza electronicamente as suas movimentações e que planeia a construção de cidades industriais exclusivamente femininas.
A primeira cidade será construída em Hofuf, perto da fronteira com o Qatar, e deverá ser inaugurada em 2013, criando cinco mil empregos. Seguem-se outras urbes semelhantes, numa iniciativa que pretende permitir a participação das mulheres na vida produtiva, preservando a segregação entre géneros.
Esta obsessão pela limitação dos direitos das mulheres é tão grande que este ano o Ikea, o maior grupo de distribuição de mobiliário do mundo, se viu obrigado a suprimir a presença feminina dos seus catálogos, para que pudessem entrar no reino do Rei Abdallah bin Abdul Aziz Al Saud.
Impossibilitado de tapar o corpo e esconder o cabelo de todas as mulheres do catálogo, o Ikea optou por apagá-las dos retratos que dão vida aos ambientes recriados com o mobiliário e acessórios vendidos pelo grupo.
Na versão que é distribuída em todo o mundo, a mãe aparece ao lado do filho a lavar os dentes numa casa de banho; na versão saudita o filho aparece sozinho. Já noutro ambiente, um grupo de mulheres desfruta alegremente de um refeição, enquanto que no catálogo para a Arábia Saudita, a mesa encontra-se decorada, mas desprovida de vida humana.
A supressão da imagem feminina desencadeou protestos pelo compromisso da gigante sueca em torno dos valores de respeito e igualdade de género.
“Devíamos ter percebido logo que excluir a imagem da mulher do catálogo da Arábia Saudita chocava com aqueles que são os valores defendidos pelo Grupo”, afirmou o Ikea, em comunicado, não deixando de sacudir a água do seu capote ao acrescentar que a produção das várias versões do catálogo está a cargo de empresas de franchising.
A ministra do Comércio Exterior da Suécia, Eva Björling, considerou que as imagens retocadas são um triste exemplo que mostra o longo caminho que a Arábia Saudita tem a percorrer em termos de igualdade entre homens e mulheres. Mas colocou mal a questão, porque o que se verifica é uma tendência para agravar a distância entre os direitos dos homens e a ausência de garantias para as mulheres.
O caso tornado público esta semana demonstra-o bem e foi denunciado por um activista dos direitos das mulheres. Manal Al Sherif recebeu uma mensagem SMS das autoridades para a imigração, alertando-o que a mulher tinha deixado o aeroporto internacional de Riyadh. Ironicamente, o casal embarcava junto e o que o aviso fez foi chamar a atenção para a modernização do sistema que avisa os tutores legais, quando os dependentes a seu cargo saem do país.
Segundo a legislação da Arábia Saudita, que mergulha na Sharia (lei sagrada do islamismo), as mulheres (que são tratadas como menores) necessitam de uma autorização do homem que tem a sua guarda (pode ser o marido, pai ou irmão) se quiserem estudar, trabalhar ou sair do país.
Para levar o cumprimento da lei wahabita ao extremo, o reino adoptou um sistema que avisa os guardiões das mulheres e que, segundo o blogger saudita Ahmed al Omram, estará em funcionamento há já algum tempo. A novidade é que a tecnologia dispõe agora de um dispositivo que permite o envio de SMS para os tutores, quando os dependentes a cargo, que podem ser também filhos e empregados estrangeiros, tentem sair do reino.
“As autoridades estão a usar a tecnologia para monitorar as mulheres”, denunciou a jornalista saudita Badriya al-Bishr, criticando o “estado de escravidão a que as mulheres são submetidas”.
Em Junho de 2011, activistas dos direitos femininos lançaram uma campanha para que as mulheres sejam autorizadas a conduzir no país. Algumas violaram a proibição e acabaram presas, sendo libertadas após o pagamento de fiança e de assinarem um termo, dizendo que nunca mais conduziriam.
Meses depois, o rei Abdallad anunciou o direito de voto às mulheres nas eleições municipais de 2015, numa iniciativa considerada histórica, e, em Outubro deste ano, o Ministério da Justiça saudita permitiu que advogadas com ensino superior e que trabalharam, pelo menos, três anos num escritório pudessem assumir casos.
Só que a lei, que deveria entrar em vigor em Novembro, ainda não foi implementada e 2015 está distante, o que acabou por tornar evidente que as medidas anunciadas não passam de intervenções de cosmética para maquilhar o descontentamento feminino.
A maquilhagem pode disfarçar, mas não apaga a discriminação.

3 comentários:

  1. Olá, Isabel
    Fiz a publicação no meu FB deste caso do aviso por sms da deslocação de mulheres sauditas mas depois, no "fact checking", bati sempre na mesma fonte e só uma.
    Pelo que pedi desculpas e apaguei o post.
    Pode ser verdade — tecnologicamente é facílimo com os tlms com georeferenciação ou através de info das operadores — mas não achei na altura corroboração.
    Agora a "coisa" já se espalhou e é mais provável que, entre tanta malta a referir o caso, mais gente tenha feito verificação de factos: http://article.wn.com/view/2012/11/23/Uproar_over_Saudi_womens_SMS_tracking/
    Grande abraço do
    Alex

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  2. Alex, creio que a questão do aviso por sms aos guardiões das mulheres, sempre que elas tentem sair do país, é um pormenor, no meio de uma questão mais vasta, que são as restrições impostas às mulheres.
    O sistema de guardiões saudita trata as mulheres como menores e estas estão proibidas de viajar para o estrangeiro, para estudar ou trabalhar, sem autorização dos seus guardiões, o que é corroborado pela organização Human Rights Watch, num relatório de 2012.
    Pelo que conclui pela informação que consultei e cruzei, as mulheres não são controladas por sms. Os guardiões é que são avisados, por sms, quando elas tentam viajar.
    Numa das notícias que encontrei, o ministro do Interior saudita diz que o sistema de alerta aos guardiões faz parte dos planos de modernização do e-government.

    Grande abraço e agradecimentos ao Filipe por ter restabelecido a sanidade do meu computador,
    Isabel

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  3. Alex, devo acrescentar que, para além das fontes iniciais da notícia: a activista Manal al-Sharif, que conduziu a campanha pela desobediência da lei que proibe as sauditas de conduzir e que pôs a circular a notícia sobre o sistema de alertas por SMS, já há mais fontes sauditas a pronunciarem-se sobre este caso.

    Safa Alahmad, jornalista freelance e realizadora de documentários, afirmou recentemente ao «The Guardian»: "Apparently, as a Saudi woman, I don't even deserve the simplest of rights like the right to privacy. The core issue remains the same. Saudi women are viewed and treated as minors by the Saudi government. A text message doesn't change that. It's just adding insult to injury."

    Eu não poderia estar mais de acordo. O governo saudita, com esta iniciativa, apenas acrescenta insulto à injúria.

    Abraço,
    Isabel

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