terça-feira, 9 de julho de 2013

Deus lhe pague (*) (crónica publicada no Novo Jornal*)

“Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague”




No espaço de uma semana, protestos que tiveram início em São Paulo contaminaram o Brasil inteiro. Numa década, os governos de Lula da Silva, que seguiram o impulso dado por Fernando Henrique Cardoso, tiraram milhões de cidadãos da pobreza extrema e o Brasil atingiu o grupo de “alto desempenho” em desenvolvimento humano, ao figurar entre os 15 países que mais conseguiram reduzir o défice no Índice de Desenvolvimento Humano, entre 1990 e 2012, conforme conclui o relatório do Desenvolvimento Humano 2013 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

“Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague”


A estratégia de política estrutural de longo prazo adoptada pelo Brasil e seguida pelo Governo de Dilma Rousseff, de pretender universalizar o bem-estar social, com foco na redução das desigualdades e redução da pobreza colocou o país em lugar de destaque no Relatório do Desenvolvimento Humano 2013, divulgado em Março, e que este ano teve como tema a «Ascensão do Sul: progresso humano num mundo diversificado”.

“Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague”

A classificação de “alto desempenho” foi dada a países que tiveram um “desenvolvimento humano significativo” pois, além de experimentarem um “aumento do rendimento nacional”, registaram “valores superiores à média nos indicadores de saúde e educação” e “tiveram um desempenho melhor” do que países que se encontravam em patamares semelhantes em 1990. O PNUD salienta que as “sociedades mais igualitárias tendem a produzir melhores resultados na maioria dos parâmetros relativos ao desenvolvimento humano”.

“Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague”

Mergulhada numa grave crise, que aumentou drasticamente os níveis de pobreza e gerou uma insatisfação generalizada, a Grécia fez entrar há dois anos nos quadros da polícia 7.000 novos agentes, treinados pela polícia israelita, que funcionam como autênticas máquinas de guerra na dissuação de protestos. Circulam em bandos por todo o lado; são novos (“não têm mais de 25 anos”) e estão fortemente artilhados. Manifestam uma insensibilidade absoluta e arreiam sem dó nem piedade contra os que se atrevem a levantar a voz contra a miséria que se instalou nas ruas. Por todo o lado de Atenas se vêem crianças e velhos sujos a vender o que quer que seja. Um jornalista grego tem ataques epilépticos desde que foi brutalmente agredido durante uma manifestação, como testemunhou a jornalista e fotógrafa portuguesa Sandra Bernardo, durante o relato da sua viagem a Atenas.

“Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague”

O Brasil mostrou esta semana que não quer voltar ao tempo em que Chico Buarque lançou o seu quarto album «Construção» (1971, o país vivia em ditadura militar), que abre com o tema «Deus lhe pague». Quer cidadãos cientes dos seus direitos, que exigem fazer ouvir a sua voz aos governantes e que já não erguem as mãos para o céu em agradecimento pelas migalhas que caem no seu regaço.

“Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague”

O protesto que se ergueu no país do futebol é de um movimento nacional apartidário, que “demonstra o valor da democracia”, como afirmou Dilma Rousseff, não esquecendo o seu passado histórico de lutas, que permitiu fazer com que o Brasil seja hoje aquilo que ele é. Os brasileiros já não anseiam apenas pelo pão, despertaram para os seus direitos e lutam por eles.

(*)Título de Chico Buarque
*Publicada no dia 18 de Junho de 2013
 

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