segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A outra guerra (crónica publicada no Novo Jornal*)

Há uma guerra que avança no mundo, sem arsenal químico, nem armas tradicionais, mas com efeitos mais letais do que as guerras convencionais.
Ela mata, mutila e dilacera milhões de mulheres e crianças. Apesar disso, não merece parangonas, não mobiliza os líderes internacionais, não chega aos grandes fóruns mundiais, nem exorta discursos da Nação.
Limita-se a constar em relatórios de organizações humanitárias, a ser discutida em cimeiras sectoriais e, de vez em quando, abre noticiários, que mobilizam a opinião pública durante um período de tempo, geralmente curto, caindo no esquecimento necessário para o retomar da velha ordem. Uma ordem que arreda as mulheres do direito a serem seres humanos com direitos.
A violação colectiva que, em Dezembro, vitimou uma estudante de medicina em Nova Deli, na Índia, chamou a atenção para o problema das violações e desencadeou um movimento sem precedentes no país, que obrigou o aparelho judicial a endurecer a resposta contra os autores dos crimes sexuais, mas revelou apenas a ponta do icebergue. Um icebergue enorme que navega, silenciosamente, pelos mares do planeta.
O quadro fica um pouco mais completo com o estudo, divulgado esta semana pelas Nações Unidas, que revela que um em cada quatro homens na região da Ásia-Pacífico reconhece ter cometido uma violação e que a maioria saiu impune.
O estudo baseia-se em inquéritos a 10 mil homens, dos 18 aos 49 anos, em nove lugares do Bangladesh, Camboja, China, Indonésia, Sri Lanka e Papua Nova Guiné. E torna evidente que os homens começam a usar a violência contra as mulheres ou meninas muito jovens, com 24% dos inquiridos em Boungainville, na Papua Nova Guiné, e 15% no Cambodja a cometer o seu primeiro crime sexual com menos de 14 anos.
Mais. Uma amostra superior a 80 por cento dos que admitiram ter violado no Bangladesh e na China responderam que tinham direito a manter relações sem consentimento.
O estudo da ONU, publicado na revista médica britânica «The Lancet», mostra diferenças entre as várias zonas analisadas, com resultados que vão dos 4,3% no Bangladesh e os 40% alcançados numa ilha da Papua Nova Guiné, país que regista uma das mais altas taxas de violência contra as mulheres no mundo.
Em média, quase 11% dos homens reconhecem ter cometido pelo menos uma violação. A proporção sobe para quase um quarto (24%) quando se inclui na pergunta as violações de parceiras, esposas ou namoradas, com diferenças de assinalar entre os 13% do Bangladesh e os 59% na Papua Nova Guiné.
Surpreendente também é o facto de 4% dos inquiridos, oscilando entre 1% e 14% nos vários lugares estudados, admitirem que já cometeram uma violação colectiva.
A violação não é um fenómeno das sociedades machistas, mas é nessas que atinge proporções alarmantes. Nos lugares estudados há um predomínio da violência machista, característica que, associada às desigualdades sociais e à discriminação, alimenta os abusos e a violência contra as mulheres e raparigas, em muitos casos esposas ou familiares, que são educadas para serem submissas.
A prevenção e a penalização são duas armas importantes para inverter o quadro. É um trabalho que vai levar gerações a ter resultados, mas que tem de ser iniciado e que não pode contar com a complacência, tradicional, nem com o temor das mulheres.
A estudante de medicina indiana, que morreu aos 23 anos depois de 13 dias a lutar pela vida, era o mártir que faltava para que na Índia as mulheres despertassem e chamassem a si a missão de lutar para que a sociedade deixe de ser condescendente com os crimes sexuais, uma espécie de hobby colectivo da virilidade.
O despertar da ira não acabou com as violações. Em Março de 2013, uma turista suíça foi violada por cinco homens, quando ela e o marido resolveram acampar no centro do país. Em Agosto, uma fotojornalista indiana, de 23 anos, foi alvo de uma violação, em grupo, em Bombaim, quando tirava fotografias numa fábrica têxtil abandonada. Mas quer num, quer no outro caso, os autores da agressão foram detidos e aguardam julgamento.

Foi isso que mudou na Índia, após a violação da estudante de medicina num autocarro em Nova Deli. A denúncia já resulta em prisões e, preso a preso, a sociedade vai-se livrando do sentimento de impunidade que durante séculos escondeu os homens atrás da sua própria cobardia. E que os faz esquecer que têm filhas e que também eles saíram do útero de uma mulher.

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