Há uma guerra que avança no mundo, sem arsenal químico, nem
armas tradicionais, mas com efeitos mais letais do que as guerras
convencionais.
Ela mata, mutila e dilacera milhões de mulheres e crianças.
Apesar disso, não merece parangonas, não mobiliza os líderes internacionais,
não chega aos grandes fóruns mundiais, nem exorta discursos da Nação.
Limita-se a constar em relatórios de organizações
humanitárias, a ser discutida em cimeiras sectoriais e, de vez em quando, abre
noticiários, que mobilizam a opinião pública durante um período de tempo,
geralmente curto, caindo no esquecimento necessário para o retomar da velha
ordem. Uma ordem que arreda as mulheres do direito a serem seres humanos com direitos.
O quadro fica um pouco mais completo com o estudo, divulgado
esta semana pelas Nações Unidas, que revela que um em cada quatro homens na
região da Ásia-Pacífico reconhece ter cometido uma violação e que a maioria
saiu impune.
O estudo baseia-se em inquéritos a 10 mil homens, dos 18 aos
49 anos, em nove lugares do Bangladesh, Camboja, China, Indonésia, Sri Lanka e
Papua Nova Guiné. E torna evidente que os homens começam a usar a violência
contra as mulheres ou meninas muito jovens, com 24% dos inquiridos em
Boungainville, na Papua Nova Guiné, e 15% no Cambodja a cometer o seu primeiro
crime sexual com menos de 14 anos.
Mais. Uma amostra superior a 80 por cento dos que admitiram
ter violado no Bangladesh e na China responderam que tinham direito a manter
relações sem consentimento.
O estudo da ONU, publicado na revista médica britânica «The Lancet», mostra
diferenças entre as várias zonas analisadas, com resultados que vão dos 4,3% no
Bangladesh e os 40% alcançados numa ilha da Papua Nova Guiné, país que regista
uma das mais altas taxas de violência contra as mulheres no mundo.
Em média, quase 11% dos homens reconhecem ter cometido pelo
menos uma violação. A proporção sobe para quase um quarto (24%) quando se
inclui na pergunta as violações de parceiras, esposas ou namoradas, com
diferenças de assinalar entre os 13% do Bangladesh e os 59% na Papua Nova
Guiné.
Surpreendente também é o facto de 4% dos inquiridos, oscilando
entre 1% e 14% nos vários lugares estudados, admitirem que já cometeram uma
violação colectiva.
A violação não é um fenómeno das sociedades machistas, mas é
nessas que atinge proporções alarmantes. Nos lugares estudados há um predomínio
da violência machista, característica que, associada às desigualdades sociais e
à discriminação, alimenta os abusos e a violência contra as mulheres e
raparigas, em muitos casos esposas ou familiares, que são educadas para serem
submissas.
A prevenção e a penalização são duas armas importantes para
inverter o quadro. É um trabalho que vai levar gerações a ter resultados, mas
que tem de ser iniciado e que não pode contar com a complacência, tradicional, nem
com o temor das mulheres.
A estudante de medicina indiana, que morreu aos 23 anos
depois de 13 dias a lutar pela vida, era o mártir que faltava para que na Índia
as mulheres despertassem e chamassem a si a missão de lutar para que a
sociedade deixe de ser condescendente com os crimes sexuais, uma espécie de
hobby colectivo da virilidade.
O despertar da ira não acabou com as violações. Em Março de
2013, uma turista suíça foi violada por cinco homens, quando ela e o marido
resolveram acampar no centro do país. Em Agosto, uma fotojornalista indiana, de
23 anos, foi alvo de uma violação, em grupo, em Bombaim, quando tirava
fotografias numa fábrica têxtil abandonada. Mas quer num, quer no outro caso,
os autores da agressão foram detidos e aguardam julgamento.
Foi isso que mudou na Índia, após a violação da estudante de
medicina num autocarro em Nova Deli. A denúncia já resulta em prisões e, preso
a preso, a sociedade vai-se livrando do sentimento de impunidade que durante
séculos escondeu os homens atrás da sua própria cobardia. E que os faz esquecer
que têm filhas e que também eles saíram do útero de uma mulher.
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