segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A farsa do Cairo (crónica publicada no Novo Jornal*)

O sangue dos mais de 500 mortos que a intervenção militar no Egipto derramou na quarta-feira sangrenta colocou o país à beira de uma guerra civil e tirou o véu sobre a encenação montada pelo regime militar.
O país dos faraós foi o segundo a ver soprar os ventos da Primavera Árabe, mas o ciclo das estações parou no Inverno. As manifestações populares que eclodiram em Fevereiro de 2011, na Praça Tahir, derrubaram o regime de Hosni Mubarak, conduziram a eleições livres, mas a implantação da democracia não deu frutos.
E porque é que não deu frutos? Porque os militares mantêm o país refém de uma peça teatral enquanto restabelecem a velha ordem para garantir a manutenção do poder nas suas mãos.
O enredo desta peça foi escrito por três militares que são, simultaneamente, co-protagonistas: Omar Suleiman, ex-chefe da Direcção Geral de Inteligência Egípcia, nomeado por Murabak como seu vice-presidente; Mohamed Hussein Tantawi, chefe de Estado efectivo da Junta Militar que assumiu o governo após a queda de Mubarak; e Abdel Fatah al-Sissi, actual chefe das Forças Armadas.
Omar Suleiman foi o primeiro a entrar em cena ao anunciar, a 11 de Fevereiro de 2011, a queda do Presidente Murabak, entregando a Mohamed Hussein Tantawi a chefia do governo.
Com os actores a perfilarem-se no palco, a 13 de Fevereiro, Tantawi anuncia grandes mudanças: a Constituição é suspensa, o Parlamento dissolvido e as forças armadas são encarregues de governar até às eleições.
Em Junho de 2012, realizam-se as eleições presidenciais e Mohamed Morsi, candidato da Irmandade Muçulmana, é proclamado vencedor.
Morsi nomeia, em Agosto de 2012, Abdel Fatah al-Sissi para os cargos de chefe das Forças Armadas e ministro da Defesa e inicia o caminho para reforçar os seus poderes como Presidente, tentando moldar a política nacional aos seus interesses e aos da Irmandade Muçulmana.
Cabe ao general-chefe-das-forças-armadas-ministro Sissi um dos papéis derradeiros na história. Em Junho, dando expressão aos protestos contra Morsi, o mais jovem militar a assumir o cargo de chefe das Forças Armadas no país tenta pressionar o Presidente a renunciar. Face à recusa, Sissi conduz o golpe de Estado que derruba Morsi e nomeia um governo provisório liderado por Hazem Bellawi, que começa a restaurar a velha ordem.
Enquanto os partidários da Irmandade Muçulmana ocupam duas praças no Cairo, para exigir a restituição do poder ao Presidente deposto, o governo provisório nomeia uma série de generais como governadores. Num total de 25 governadores, 19 são generais.
Com esta cartada, o governo promovido pelo general Sissi restaura uma das tácticas de Murabak: distribuir postos do Estado para fomentar a lealdade entre as chefias do Exército, garantindo ao mesmo tempo o controlo do Estado policial.
Na quarta-feira, dia 14, o Exército liderado por Abdel Fatah al-Sissi avança artilhado sobre os simpatizantes de Morsi, deixando um rasto de destruição e morte. Uma semana depois e com mais algumas centenas de mortos na contabilidade de baixas, Murabak sai em liberdade e é colocado em regime de residência vigiada.
Cai o pano sobre a fachada de democracia montada no último ano e meio. A comunidade internacional acorda e olha para o palco. Consegue finalmente interpretar a peça que se desenrola à sua frente, mas manifesta-se incapaz de ter uma reacção adequada.
Os EUA admitem rever a cooperação militar com o Egipto face à intervenção musculada do exército, mas recuam; da Túrquia surgem acusações à mão de Israel no golpe militar; e da Europa levantam-se apelos para evitar uma guerra civil.
O Egipto, com os seus 84 milhões de habitantes, a sua multiplicidade religiosa, que dificulta a implantação de um Estado laico, e a sua fragilidade social tem um potencial destruidor equivalente a uma bomba de fragmentação. Para além de estar em causa a vida de milhões de pessoas e a estabilidade política da região, é um importante património da Humanidade que fica vulnerável. Que não se repita no Egipto o que aconteceu no Afeganistão, no Iraque e na Síria.
Há uma transumância de guerrilheiros islamitas, que andam de país em país a instaurar o caos para implantar Estados islâmicos. O Exército que impede que se instalem no Egipto é o mesmo que barra a instauração da democracia. Há entre estes dois pendores um equilíbrio que é difícil obter. Mas que é necessário para manter o Egipto a salvo.

*Publicada no dia 23 de Agosto de 2013

Sem comentários:

Enviar um comentário