Gabo defendia o velho modo de aprender o ofício, sem gravadores, nem aspas, mas com ética e compromisso social
“Ao chegar a Lisboa há duas semanas tive a impressão de estar a viver de novo a experiência juvenil da minha primeira chegada a Havana, a 20 de Janeiro de 1959, poucos dias depois do triunfo da Revolução. Parecia-me isto não apenas pelo Verão prematuro de Portugal, pelo cheiro a marisco do vento e pelo ar de liberdade nova que se respirava por toda a parte, mas obedecia a coincidências mais profundas. A influência negra é muito evidente em Portugal através das colónias africanas, e manifesta-se no próprio carácter dos portugueses, e todo o País está saturado de música quente de Cabo Verde e Angola, que parece música do nosso trópico”.
Assim começa a primeira de três reportagens que Gabriel
García Márquez fez em Portugal, sobre o 25 de Abril de 1974. Nos textos,
publicados originalmente na revista Alternativa e compilados, mais tarde, no
livro «Por la Libre», o jornalista colombiano e já então consagrado escritor
traça o ambiente que se vivia em Portugal e estabelece as similitudes entre a revolução
portuguesa e a cubana, com a qual manteve simpatias até à sua morte.
Márquez está presente em todas as reportagens que fez. A sua
forma de contar, o modo como estabelecia analogias para tornar mais
perceptíveis os fenómenos políticos e sociais, a maneira como lia o mundo, a
partir da sua própria mundividência, muito marcada pelas leituras de infância e
da juventude – onde pontificavam nomes como Kafka, Faulkner, Hemingway e John
Dos Passos - e o tempo que despendia para fazer chegar aos leitores um retrato aproximado
da realidade. Era tudo isto que o distinguia. Uma combinação de características
e factores que faz falta hoje a um jornalismo que vive com pressa e sob a
pressão do fecho, que não tem tempo para a reflexão, nem para mergulhar a fundo
nos temas, como lamentou o autor de «Relato de um Náufrago», em 2008, na sétima
edição dos prémios atribuídos pela Cementos de México e a Fundación Nuevo
Periodismo Iberoamericano.
O escritor de «Cem Anos de Solidão», livro que o consagrou
mundialmente, confessou “sofrer como um cão” pela má qualidade do jornalismo
escrito, lamentou que o actual jornalismo se faça tão depressa, porque isso
impede os jornalistas de pensar melhor o que escrevem, e o resultado
reflecte-se no facto de encontrar poucas reportagens ou artigos que possam ser
consideradas joias.
O filho de um telegrafista e da filha de um coronel, que
quase morreu à fome por causa do seu amor à escrita, via o jornalismo como “uma
paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada pelo seu confronto
descarnado com a realidade”.
O rumo que a profissão tomou levou-o a iniciar em Cartagena,
na Colômbia, um projecto docente em torno da Fundação do Novo Jornalismo
Ibero-americano com o intuito de “inventar outra vez o velho modo” de aprender
o ofício, sem gravadores, nem aspas, mas com ética e compromisso social.
Gabo nasceu predestinado, pelo ramo materno de Aracataca
(onde nasceu), para contar histórias. A sua avó materna, Dona Tranquilina
Iguarán, com quem viveu até aos oito anos - altura em que o avô morreu e ele se
mudou para casa dos pais em Barranquilla - povoou-lhe a infância com histórias,
onde a fantasia se misturava com a realidade num caldeirão mágico que o
impregnou. Essa marca ficou. Nunca fez uma distinção clara entre o real e o
fantástico – eram dois universos que se completavam, recordou o jornalista
brasileiro Luciano Martins, após a sua morte.
“Os privilegiados que puderam observá-lo de perto sabem que
ele vivia em um estado que excedia os parâmetros comumente aceitos como
definidores daquilo que existe. Realidade e imaginação se completavam”, lembrou
Luciano, que fez parte do grupo de 10 jornalistas, com quem Gabo traçou, em
1997, o projecto do jornalismo ideal.
Um projecto que devia chegar a outros hemisférios, porque
sem o regresso às grandes reportagens o jornalismo está condenado a morrer,
como indicia o definhamento progressivo de jornais em vários lugares do mundo.
*Publicada no dia 2 de Maio de 2014
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