terça-feira, 6 de maio de 2014

Jornalismo ideal (crónica publicada no Novo Jornal*)

Gabo defendia o velho modo de aprender o ofício, sem gravadores, nem aspas, mas com ética e compromisso social

“Ao chegar a Lisboa há duas semanas tive a impressão de estar a viver de novo a experiência juvenil da minha primeira chegada a Havana, a 20 de Janeiro de 1959, poucos dias depois do triunfo da Revolução. Parecia-me isto não apenas pelo Verão prematuro de Portugal, pelo cheiro a marisco do vento e pelo ar de liberdade nova que se respirava por toda a parte, mas obedecia a coincidências mais profundas. A influência negra é muito evidente em Portugal através das colónias africanas, e manifesta-se no próprio carácter dos portugueses, e todo o País está saturado de música quente de Cabo Verde e Angola, que parece música do nosso trópico”.
Assim começa a primeira de três reportagens que Gabriel García Márquez fez em Portugal, sobre o 25 de Abril de 1974. Nos textos, publicados originalmente na revista Alternativa e compilados, mais tarde, no livro «Por la Libre», o jornalista colombiano e já então consagrado escritor traça o ambiente que se vivia em Portugal e estabelece as similitudes entre a revolução portuguesa e a cubana, com a qual manteve simpatias até à sua morte.
Gabo, como ficou conhecido, viu marcas comuns na moda da barba que as “tropas repatriadas” trouxeram das colónias, à semelhança dos guerrilheiros de Sierra Maestra”; na confraternização dos soldados portugueses com os civis “sem preconceitos de qualquer tipo”; e, sobretudo, no “ambiente de festa contagiante num país que não dorme”. Uma festa “como todas as do trópico, que têm tanto de júbilo como de incerteza”.
Márquez está presente em todas as reportagens que fez. A sua forma de contar, o modo como estabelecia analogias para tornar mais perceptíveis os fenómenos políticos e sociais, a maneira como lia o mundo, a partir da sua própria mundividência, muito marcada pelas leituras de infância e da juventude – onde pontificavam nomes como Kafka, Faulkner, Hemingway e John Dos Passos - e o tempo que despendia para fazer chegar aos leitores um retrato aproximado da realidade. Era tudo isto que o distinguia. Uma combinação de características e factores que faz falta hoje a um jornalismo que vive com pressa e sob a pressão do fecho, que não tem tempo para a reflexão, nem para mergulhar a fundo nos temas, como lamentou o autor de «Relato de um Náufrago», em 2008, na sétima edição dos prémios atribuídos pela Cementos de México e a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano.
O escritor de «Cem Anos de Solidão», livro que o consagrou mundialmente, confessou “sofrer como um cão” pela má qualidade do jornalismo escrito, lamentou que o actual jornalismo se faça tão depressa, porque isso impede os jornalistas de pensar melhor o que escrevem, e o resultado reflecte-se no facto de encontrar poucas reportagens ou artigos que possam ser consideradas joias.
O filho de um telegrafista e da filha de um coronel, que quase morreu à fome por causa do seu amor à escrita, via o jornalismo como “uma paixão insaciável que só pode ser digerida e humanizada pelo seu confronto descarnado com a realidade”.
O rumo que a profissão tomou levou-o a iniciar em Cartagena, na Colômbia, um projecto docente em torno da Fundação do Novo Jornalismo Ibero-americano com o intuito de “inventar outra vez o velho modo” de aprender o ofício, sem gravadores, nem aspas, mas com ética e compromisso social.
Gabo nasceu predestinado, pelo ramo materno de Aracataca (onde nasceu), para contar histórias. A sua avó materna, Dona Tranquilina Iguarán, com quem viveu até aos oito anos - altura em que o avô morreu e ele se mudou para casa dos pais em Barranquilla - povoou-lhe a infância com histórias, onde a fantasia se misturava com a realidade num caldeirão mágico que o impregnou. Essa marca ficou. Nunca fez uma distinção clara entre o real e o fantástico – eram dois universos que se completavam, recordou o jornalista brasileiro Luciano Martins, após a sua morte.
“Os privilegiados que puderam observá-lo de perto sabem que ele vivia em um estado que excedia os parâmetros comumente aceitos como definidores daquilo que existe. Realidade e imaginação se completavam”, lembrou Luciano, que fez parte do grupo de 10 jornalistas, com quem Gabo traçou, em 1997, o projecto do jornalismo ideal.
Um projecto que devia chegar a outros hemisférios, porque sem o regresso às grandes reportagens o jornalismo está condenado a morrer, como indicia o definhamento progressivo de jornais em vários lugares do mundo.

*Publicada no dia 2 de Maio de 2014

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