terça-feira, 21 de outubro de 2014

Declaração de inocência (crónica publicada no Novo Jornal*)


                                          O último beijo de Ethel e Julius Rosenberg

O americano David Greenglass protagonizou um dos maiores e mais importantes escândalos de espionagem da Guerra Fria, que permanece sob uma forte nebulosa mais de meio século depois.
Nascido em 1922, este filho de imigrantes judeus de ascendência russa e austríaca viveu os primeiros anos em Nova Iorque, onde a família se instalou e onde ele viria a nascer. Pouco antes de entrar nas Forças Armadas americanas, juntou-se à Juventude Comunista (Young Communist League), com a sua mulher Ruth Printz, com quem casara em 1942, tinha ela 18 anos.
Como mecânico na base militar de Jackson, no Mississippi, o jovem Greenglass é promovido a sargento e, pouco depois, é convidado a integrar o Projecto Manhattan, programa criado em 1940 pelos EUA, com o apoio do Reino Unido e do Canadá, para desenvolvimento da bomba atómica durante a Segunda Guerra Mundial.
Durante o tempo em que trabalha no Projecto Manhattan, com sede em Los Alamos, no Novo México, David torna-se espião ao serviço da União Soviética. Durante anos rouba e passa informação secreta sobre o programa nuclear norte-americano. Acaba por ser detido, em 1950, e durante os interrogatórios implica o seu cunhado, Julius Rosenberg, a quem, segundo ele, passava a informação.
Greenglass fornece inclusivamente aos serviços secretos americanos e ingleses provas que condenam a sua própria irmã, Ethel. Afirma que ela estava presente numa das reuniões e que a viu datilografar as notas.
Apesar de reclamar inocência, o casal é sujeito a um duro julgamento por venda de informação secreta aos soviéticos. Vinte e seis pedidos de clemência não são suficientes para inocentar os dois. Nem os pareceres dos físicos que analisaram os planos alegadamente entregues por Julius e Ethel e que foram pelos académicos descritos como “caricaturas” cheias de erros.
Em 1951, marido e mulher são condenados à morte. A sentença é aprovada pelo Presidente Dwight Eisenhower, perante um coro de protestos.
Antes da execução, na cadeia de Sing Sing, é dada uma oportunidade ao casal para estar junto. Um telefone é posto à sua disposição para que confesse a culpa ao secretário de Justiça. Julius vira as costas ao aparelho. O casal despede-se com um abraço e um beijo na boca, registado numa fotografia a preto e branco.
Às 20h06 do dia 19 de Junho de 1953, Julius é executado na cadeira eléctrica. Seis minutos mais tarde, morre Ethel. Tornam-se os únicos cidadãos civis dos EUA a serem executados por conspiração.
Os EUA viviam então na era do macarthismo, altura em que a simples simpatia pelos ideais comunistas era considerado crime grave. Foi o tempo das perseguições políticas e do desrespeito pelos direitos civis. Uma década de listas negras (1940-1950), que vitimou milhares de pessoas, implicadas por terceiros simplesmente para livrarem a face. Milhares de outras caíram em desgraça por meras suspeitas, não raramente, infundadas. A suspeita, mesmo que baseada em conclusões parciais, questionáveis e sem fundamento plausível, contaminava como praga e condenava a um penoso ostracismo. Muitos perderam o emprego, tiveram a carreira destruída; outros foram presos e alguns optaram pelo suicídio.
Voltando a David Greenglass, cumpriu 10 anos de uma pena de 15. Foi libertado em 1960 e passou a viver em Nova Iorque, com uma identidade falsa.
Em 1996, acabou por confessar a um jornalista do New York Times que mentiu para salvar a sua vida e a da sua mulher. “Como um espião que entregou a família… Não me importo. Durmo bem”, afirmou, explicando num relato cheio de lacunas que, afinal, era a mulher quem escrevia as notas. Não a irmã.
Em 2008, um grupo de historiadores tentou aceder às transcrições do processo do júri que indiciou os Rosenberg. David opôs-se à libertação do seu testemunho e um juiz deu-lhe razão. Manteve os depoimentos em sigilo.
A 1 de Julho deste ano, David morreu. A sua morte não foi notícia. Apenas esta semana, no dia 14 de Outubro, o New York Times tornou público o óbito. Os seus sobrinhos emitiram uma declaração a dizer que foram David e Ruth Greenglass que passaram as informações à URSS, culpando depois os seus pais.
Que a morte do carrasco permita agora aprofundar a investigação que os académicos tentam, há anos, desenvolver para que possam corrigir os anais da história. Porque a dor pela perda de vidas inocentes ninguém consegue atenuar. Mesmo que haja uma tardia declaração de inocência.

*Publicada no dia 17 de Outubro de 2014

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