quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Todos unidos (crónica publicada no Novo Jornal*)

                                          Marcha pelos estudantes desaparecidos em Iguala, no México

“As pessoas com ébola nos Estados Unidos deviam ser executadas”. Com esta lacónica frase, Todd Kincannon abre uma torrente de sugestões sobre como atacar a epidemia de ébola, que já matou mais de 3.500 pessoas em África e que está a criar uma vaga de crianças órfãs em cinco países do continente.
À falta de outra tribuna, o advogado americano serviu-se do Twitter para lançar sugestões, antecipando os apelos do secretário de Estado John Kerry para que a comunidade internacional faça mais para ajudar a combater esta “crise mundial emergente”.
Só que Todd Kincannon está longe das boas intenções proclamadas pelo chefe da diplomacia americana. Aliás, benevolência e humanismo são conceitos estranhos ao jurista, que após três meses ao serviço do Partido Republicano foi convidado a sair.
Se para as pessoas com ébola nos EUA, o antigo director executivo do Partido Republicano na Carolina do Sul sugere a execução, a receita para a população afectada na África Ocidental não suaviza.
“O protocolo para um teste positivo de ébola devia ser a execução imediata dos humanos e a sanitização de toda a região”, escreveu Kincannon, de 34 anos, esclarecendo que a sanitização consiste em “bombardear a região com napalm”.
O ébola serve ainda de pretexto para o advogado discorrer sobre a população africana, que, segundo ele, tem culpa da situação ser tão má. “Eles deviam deixar o canibalismo e aprender cálculo”, defende, ao mesmo tempo que tenta estabelecer uma ligação entre a actual situação de crise nos EUA e as raízes africanas do Presidente americano: “Elegemos um queniano como Presidente. Agora temos ébola e desemprego”.
Por fim, Todd Kincannon justifica a sua receita com a “necessidade de sobrevivência”, aproveitando para deixar um alerta, que mostra bem que há seres humanos que mantêm intacta a sua condição de australopitecos: “Esperem até os terroristas usarem o ébola numa bomba biológica devido à nossa estúpida compaixão”.
Depois de escrever que os homossexuais deviam ser “colocados em campos de concentração” e que os veteranos de guerra que aderiram a organizações pacifistas deveriam “voltar para o Iraque e regressar num caixão”, Kincannon viu a sua conta no Twitter ser encerrada. Mas o advogado abriu uma nova e continuou a contaminar a rede social com a síndrome da estupidez, para a qual ainda não existe cura eficaz, nem medicamento disponível. E que só pode ser atenuada com o desprezo absoluto e geral.
Dezenas de milhares de pessoas saíram à rua em várias cidades do México, na quarta-feira à noite, num gesto de indignação pelo alegado massacre de 43 estudantes de Iguala, no estado de Guerrero, sul do país, que desapareceram no dia 26 de Setembro, depois de participarem numa manifestação de protesto contra políticas de educação.
Alguns dos desaparecidos estão entre os 28 corpos encontrados no último fim-de-semana, numa vala comum. A pouco e pouco, o fio foi desfiado e pôs a descoberto o envolvimento de polícias, que, em conluio, com um dos cartéis da droga do estado de Guerrero, os Guerreiros Unidos, resolveram executar os estudantes.
Fotografias registaram o momento em que os jovens foram levados. E a investigação deu consistência às suspeitas sobre o secretário de Segurança Pública, o prefeito da cidade de Iguala, José Luís Abarca, e a sua mulher, María de los Ángeles Pineda, que estão foragidos, depois da detenção de 30 pessoas, entre as quais 22 polícias.
Um relatório dos serviços de inteligência, citado pelo jornal El Universal, indica que a mulher do autarca ordenou que o responsável local pela segurança pública reprimisse os estudantes, por temer que interrompessem um discurso naquele dia.
As ligações não se ficam por aqui. Em 2009, dois irmãos de María Pineda integravam a lista dos narcotraficantes mais procurados do país, como líderes do cartel Beltran Leyva. E, em 2013, o seu marido foi denunciado pelo assassinato de um colega de partido.
O enfraquecimento do cartel Beltran Leyva, após a detenção de alguns dos seus líderes, levou ao surgimento dos Guerreiros Unidos, que hoje estão no olho do furacão que pode virar uma página na luta contra o tráfico da droga no México, que já fez mais de 100 mil mortos desde 2007.
Há uma população que se ergue contra um negócio de morte e contra uma polícia e uma administração pública corrupta que nele participa. E que unida pode inverter os dados que hoje jogam a favor do crime.

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