quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Freud imbecil (crónica publicada no Novo Jornal*)

                                                           Foto retirada do site kittysjones.wordpress.com

David Freud é um ex-jornalista, que começou a sua carreira no Financial Times e galgou a escadaria do poder à custa de um apelido famoso - é bisneto de Sigmund Freud, considerado o pai da psicanálise – e de uma total falta de escrúpulos.
O barão de Freud foi empresário, especulador e conselheiro, antes de se tornar político. Conviveu primeiro com os trabalhistas, no Governo de Tony Blair, e depois com os conservadores, quando já se adivinhava que o poder ia mudar para as mãos de David Cameron, dando mostras de uma talentosa elasticidade ou, como alguns referem, sendo dono de uma “moral ambígua”.
Durante anos viveu da especulação no coração financeiro de Londres. Promoveu empresas e negócios ruinosos, que aniquilaram muitas poupanças e que quase destruíram a sua carreira. Mas manteve-se sempre à tona de água.
Em 2006, e sem qualquer experiência na área, foi convidado pelo primeiro-ministro Tony Blair para fazer uma proposta de reforma ao sistema de segurança social e do trabalho britânico. Freud reconheceu que não sabia nada sobre o assunto, aceitou o cargo e, apesar da complexidade do tema, em três semanas, apresentou um projecto de reforma que destruía muitos dos fundamentos da assistência social britânica.
Em 2009, juntou-se ao partido conservador. Recebeu o título de barão no Condado de Kent e tornou-se ministro-sombra na Câmara dos Lordes, a Câmara Alta do Parlamento do Reino Unido.
Em 2010, vários grupos ligados à igreja e organizações de defesa dos direitos humanos queixaram-se ao primeiro-ministro por empolamento nos números de fraude apontados por Freud, que levaram a cortes e ao aumento do estigma sobre os mais pobres e os mais vulneráveis.
Em 2012, David passa a ser responsável pela reforma do sistema de benefícios e, em Julho de 2013, o jornal «The Guardian» acusa-o de “maldade” pela forma como explicou o aumento dramático do número de pessoas que passou a recorrer aos bancos alimentares no Reino Unido. Freud disse que o fenómeno não tinha nada a ver com as reformas em curso, mas com o facto de as pessoas se quererem apossar de bens que estavam disponíveis gratuitamente.
O actual secretário de Estado responsável pela reforma do sistema de políticas sociais tem passado incólume a tudo. Até há uma semana, altura em que o líder dos trabalhistas, Ed Miliband, levou ao Parlamento declarações que o barão fez durante um evento do Partido Conservador.
Freud criticou, quando questionado sobre o mercado de trabalho para deficientes, que estes ganhassem o salário mínimo, que no Reino Unido é de 6,50 libras por hora (pouco mais de 10 dólares).
“Realmente eles não valem o salário que recebem e vou pensar sobre esse tema. Se há alguma coisa que podemos fazer nacionalmente, pode ser permitir que se trabalhe por duas libras por hora”, afirmou ele do alto da sua cátedra.
Se a declaração não provocou embaraço na reunião do partido, o mesmo efeito não teve no Parlamento. A indignação não se confinou aos trabalhistas. Atingiu o coração do próprio primeiro-ministro. David Cameron distanciou-se do seu ministro, deixando claro que o governo não discriminava o trabalho dos deficientes.
“Essa não é a visão de ninguém do governo. O salário-mínimo é pago a todos, inclusive os deficientes”, declarou Cameron, que é filho de um homem com deformação nas pernas e pai de uma criança com paralisia cerebral.
Horas depois da discussão no Parlamento, David Freud veio a público pedir desculpas, segundo o «The Guardian», por ordem do chefe do governo, que ordenou que o secretário de Estado se desculpasse publicamente. Caso contrário, demitia-o.
Freud lá veio dizer que foi “insensato” e manifestou-se “profundamente arrependido”. Mas o seu arrependimento é pura vacuidade. O homem revela total insensibilidade para com o ser humano e ignora que não é a posição social, nem as limitações físicas que determinam o seu valor.
O físico e cosmólogo britânico Stephen Hawkings é disso exemplo claro. A esclerose lateral amiotrófica, que lhe foi diagnosticada em 1966, com apenas 21 anos, não o impediu de ter um percurso académico notável e de contribuir para avanços significativos na área da física, do cosmos e da termodinâmica.
Para além de ter dado nome a um asteroide, Hawkings fica na história da ciência mundial e na do Reino Unido. David Freud dificilmente será lembrado. O seu nome já começou a ser sugado por um enorme buraco negro no meio de muito detrito.

*Publicada no dia 24 de Outubro de 2014

Sem comentários:

Enviar um comentário