segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Não chores por mim (Crónica publicada no Novo Jornal*)

Jabbari numa das secções do seu julgamento

Rayhaneh Jabbari foi executada no sábado, sete anos depois de ter sido presa por matar um homem que a tentara violar. De nada valeram as campanhas internacionais pela sua libertação. Nem a alegação de que agira em legítima defesa.
O homem morto por Jabbari era um antigo agente da polícia política iraniana. A sua função pesou mais na condenação do que o crime que tentou cometer. Anulou o direito à defesa de uma jovem, então com 19 anos. Pô-la sob suspeita. E justificou as ameaças e tortura a que foi sujeita, segundo as organizações de direitos humanos, para que confessasse a sua culpa.
Na última semana antes de ser executada, a mãe de Rayhaneh só teve direito a estar com a filha durante uma hora. Sholeh Pakravan, que pediu aos juízes para ser enforcada no seu lugar, não soube que aquele era o derradeiro adeus. Só soube horas antes da execução, através de uma carta que a filha escreveu, em Abril, e que entregou a militantes pacifistas para que a fizessem chegar às suas mãos, no momento certo.
A carta escrita na altura em que soube que tinha chegado “à última página do livro” da sua vida não mostra arrependimentos, antes incompreensão e um desconcertante conformismo.
“O mundo permitiu-me viver durante 19 anos. Aquela noite assustadora foi a noite em que eu deveria ter sido morta. O meu corpo seria atirado para um qualquer canto da cidade, e dias depois, a polícia chamar-te-ia ao departamento de medicina legal para me identificar e também saberias que fui violada. O assassino nunca seria encontrado pois nós não temos riqueza e o poder deles. Tu irias continuar a tua vida em sofrimento e envergonhada, e poucos anos depois morrerias desse sofrimento e nada mais haveria a dizer”, escreveu Reyhaneh, segundo a carta publicada pelo jornal electrónico português Observador.
Reyhaneh não se resignou ao papel de caça. Desferiu um golpe mortal no caçador, que “alterou o rumo da história”. O seu corpo “não foi atirado para um lado qualquer, mas sim para a sepultura que é a Evin Prison”.
Apesar disso, aceitou o desígnio e, na hora do adeus, pediu à mãe que faça o mesmo. “Entrega-te ao destino e não te queixes. Sabes melhor do que ninguém que a morte não é o fim da vida. Ensinaste-me que cada um de nós vem a este mundo para ganhar experiência e aprender uma lição e que cada pessoa que nasce tem uma responsabilidade depositada nos seus ombros”.
A jovem iraniana, executada aos 26 anos, aprendeu “que, por vezes, temos de lutar”. Foi a própria mãe que lhe ensinou que, na escola, devia “enfrentar as quezílias e os confrontos como uma senhora”, e que insistia nos reparos sobre o seu comportamento. Mas os ensinamentos não a ajudaram na hora da verdade. “Quando me apresentei em tribunal aparentei ser uma assassina a sangue-frio e uma criminosa implacável. Não verti lágrimas. Não implorei. Não me desmanchei a chorar pois confiava na lei”.
Reyhaneh assimilou, dos ensinamentos que a mãe lhe transmitiu de “modo a criar valores”, que é preciso “perseverar, mesmo que isso signifique morrer”. Foi isso que fez. Perseverou. Enfrentou o agressor. E depois um juiz que a condenou com base no preconceito, ignorando os indícios de que se tratava de alguém que apenas se quis defender.
“E este país, pelo qual cultivaste um amor em mim, nunca me quis e ninguém me apoiou quando, perante as investidas do interrogador, eu gritava e ouvia as palavras mais obscenas”, escreve à mãe, pedindo-lhe que não chore e que lhe satisfaça um último pedido. “É a única coisa que, se chegares a implorar por ela, eu não ficarei chateada, embora te tenha dito várias vezes para não implorares por nada, excepto para me salvares de ser executada”.
“Minha mãe bondosa, querida Sholeh, eu não quero apodrecer debaixo do solo. Não quero que os meus olhos e o meu jovem coração se transformem em pó. Implora para que, assim que eu seja enforcada, o meu coração, rins, olhos, ossos e tudo o que possa ser transplantado, possa ser retirado do meu corpo e dado a alguém em necessidades”.
O testamento de Reyhanet é um grito pela vida. Para que a sua vida física continue a dar vida.
“No tribunal do Criador, vai “acusar o Dr. Favandi”, “Qassem Sabani e todos aqueles que, por ignorância ou pelas suas mentiras”, lhe fizeram mal e “passaram por cima” dos seus direitos. Já que no tribunal dos homens só encontrou incompreensão. E um sistema injusto que não teve em conta que, por vezes, o que “aparenta ser realidade não é”.

*Publicada no dia 31 de Outubro de 2014

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