quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A erosão (crónica publicada no Novo Jornal*)

                                                              Milhares de pessoas são vigiadas sem o seu conhecimento

Primeiro foi o vice-primeiro-ministro turco. Bulent Arinc aconselhou as mulheres do seu país a “conservarem a rectidão moral” e a não “rirem alto em público”. A declaração causou polémica e desencadeou uma reacção espontânea. Uma chuva de vídeos e fotos de mulheres a darem sonoras gargalhadas inundou as redes sociais. Três meses depois, no país de Recep Erdogan, que entretanto passou de primeiro-ministro a Presidente, os manuais escolares de Biologia do sexto ano deixaram de ter pénis e vaginas. As imagens do anterior manual, no capítulo dedicado ao aparelho reprodutor, foram substituídas por patinhos e ursos polares. As palavras “mama” ou “virgindade” também foram suprimidas, sum sinal claro da recente islamização do país. Numa altura de crescente preocupação pelo fundamentalismo religioso, a Turquia vai na direcção certa do regresso ao obscurantismo, a caminho das trevas.

Tudo às claras. Assim parece ser no portal Insecam. O site registado na Rússia contém a lista de câmaras de videovigilância instaladas numa série de países e cujas imagens não estão devidamente protegidas. No caso de Portugal, há 276 locais, incluindo casas, cujas filmagens podem ser vistas em qualquer parte do mundo sem que os seus donos saibam, num total de 73 mil câmaras em todo o mundo. Nas imagens podem ser vistas pessoas a tomar banho, uma funcionária numa loja de óculos a consultar o computador e um empregado a servir vinho num restaurante. Já sabíamos que há governos a vigiar cidadãos através de gigantes da internet, como o Facebook, e a pedir informações ao Google. O que não sabíamos é que nem no recato do nosso lar estamos protegidos do Big Brother.

Na era da globalização e da informação digital não há segredos, nem cofre suficientemente seguro para os guardar. A cadeia americana Fox News precipitou-se a anunciar a revelação do nome do homem que matou Osama Bin Laden, antes de exibir o documentário, mas acabou por ser ultrapassada. Um jornal britânico antecipou-se na divulgação da identidade do soldado das tropas especiais da Marinha americana que disparou contra o líder da Al Qaeda e, antes deste, já um blogue tinha divulgado o nome de Rob O’Neil. Ainda assim, a Fox mantinha uma carta na manga. No documentário, transmitido esta segunda-feira, o ex-militar dos Navy Seals revelou que Bin Laden “morreu como um cobarde” e que usou a sua mulher mais nova como escudo humano, antes de ser atingido. Nada de novo, afinal. A coragem dos que se escondem atrás das armas cai no preciso momento em que passam a ser o alvo.

Uma jovem professora viu a sua candidatura a um trabalho na Coreia do Sul ser rejeitada por ser irlandesa. A empresa de recursos humanos que mediou o processo de contratação teve a “gentileza” de justificar a recusa, num e-mail onde deseja à candidata “a melhor sorte” para o futuro. “Lamento informá-la que o meu cliente não contrata pessoas irlandesas devido à natureza alcoólica do seu povo”. Katie Mulrennan nem queria acreditar. Refeita do choque, a jovem ainda respondeu, num tom sarcástico, mas não recebeu qualquer resposta de volta. A professora seguiu em frente e já encontrou outro emprego em Seul. Felizmente, nisto de povos, nem todos somos bestas, nem bestiais.

Glória Alves é um dos oito magistrados – sete portugueses e um cabo-verdiano - expulsos há duas semanas de Timor, segundo o governo de Xanana Gusmão por terem sido “incompetentes” na instrução de processos contra petrolíferas. A procuradora esteve dois anos em Timor, ao abrigo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Tal como os colegas quis, num país “em reconstrução”, ajudar a erguer as instituições essenciais a um Estado de direito. Os oito magistrados foram contratados por concurso internacional, organizado pela ONU. E tinham a “responsabilidade de ajudar em duas áreas: na formação e na titularidade dos processos”, porque o sistema de Timor “não tinha quadros suficientes para a totalidade dos inquéritos” e também porque alguns processos, como os relativos aos crimes das milícias de 2006, só podem ser julgados por um colectivo de dois juízes internacionais e um timorense. Com a expulsão dos magistrados, todo o edifício da justiça timorense desmorona. E os processos contra governantes suspeitos de corrupção ficam reduzidos a pó. Xanana Gusmão era um dos suspeitos. Tal como a ministra das Finanças. Isto prova que poucos heróis resistem ao tempo e, sobretudo, à erosão do poder. 

*Publicada no dia 14 de Novembro de 2014

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