quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O circo! (crónica publicada no Novo Jornal)

Abbot foi preso por matar a fome aos sem-abrigo, no país que cultiva o uso de armas (foto NBC)
Há um desprezo crescente pela vida humana. E não se manifesta apenas nos crimes cometidos pelo autodenominado Estado Islâmico, que ultimamente têm feito manchetes em todo o mundo.
Nos EUA, um homem foi detido quando dava comida a pessoas sem-abrigo. Arnald Abbott, de 90 anos, servia refeições num parque de Fort Lauderdale, no estado da Florida, quando foi abordado por um polícia.
“Um agente disse-me ‘largue esse prato imediatamente’, como se eu tivesse uma arma”, relatou o benfeitor à CNN.
Abbott e os dois pastores que o acompanhavam foram alvo de um processo por alimentarem os sem-abrigo, vão ter de pagar uma multa de 500 dólares e não estão livres de ir parar à prisão.
Dar comida em público passou a ser crime na cidade americana de Fort Lauderdale, desde a entrada em vigor de uma nova directiva que proíbe a partilha de refeições no espaço público.
A decisão do município foi tomada para quebrar o “ciclo vicioso” da mendicidade e, segundo o mayor local, Jack Seiler, é para cumprir, apesar da atenção que a detenção dos três beneméritos suscitou e da simpatia que a sua causa ganhou.
Arnald Abbott e o município de Fort Lauderdale não são novos nestas andanças. O primeiro lidera, desde 1991, a associação «Love Thy Neighbor», criada para prestar assistência a pessoas que nada têm. A cidade quer a todo o custo livrar-se dos sem-abrigo e fá-lo, segundo Abbott, à custa de perseguir os mais vulneráveis.
Em 1999, os dois defrontaram-se em Tribunal, num processo que Abbott interpôs por ter sido proibido de dar comida numa praia. O homem ganhou o processo contra o município e está pronto para continuar a lutar pela causa que abraçou nesta cidade do estado da Florida, onde em Setembro um homem, de 51 anos, matou a filha e os seis netos, antes de se suicidar e onde, em Julho, foi aprovada uma lei que impede os médicos de perguntarem aos pacientes se têm armas em casa.
Na cidade de Fort Lauderdale não é proibido ter armas, mas não se pode matar a fome em público. Isto no país com a maior taxa de posse de armas – estima-se em 300 milhões as que estão na posse de privados – e onde mais de sete mil crianças são hospitalizadas todos os anos por danos causados por elas.

Do outro lado do Atlântico Norte também abundam exemplos de desumanidade.
Na quarta-feira, um grupo de imigrantes africanos foi transportado num camião de lixo, depois de chegar à praia de Maspalomas, uma área turística das Ilhas Canárias, onde por vezes aportam homens que partiram em busca de uma vida melhor.
Cansados e exauridos da viagem de barco, alguns dos homens apresentavam um quadro febril, pelo que o grupo todo foi posto de “quarentena”, que é como quem diz, foi afastado dos muitos turistas que afluem a esta ilha espanhola, enquanto aguardavam por quem os recolhesse para serem submetidos ao protocolo de despiste do ébola.
Os imigrantes lá esperaram, durante seis horas, enfrentando o pico do sol e o olhar dos muitos veraneantes.
A uma distância de 50 metros de onde estavam, a Cruz Vermelha depositou máscaras, lanches e água para que os imigrantes os fossem buscar, evitando assim o contacto.
Às 15h00, lá chegou um camião do lixo de caixa aberta. Os homens foram recolhidos como gado e seguiram viagem. Quatro acabaram por ir parar a um centro de saúde para serem observados e os restantes seguiram para um centro temporário na ilha.
Tudo correria normalmente não fossem os órgãos de informação registar as imagens da viagem. A delegada do governo local, Maria del Carmen Hernandez Bento, classificou o caso de “inaceitável” e desencadeou uma investigação.
“Não é aceitável. Por isso, pedi um relatório escrito”, afirmou Maria del Carmen à imprensa, manifestando-se “muito chateada” pela forma como a Polícia Nacional deslocou os imigrantes.
O governo justificou a decisão de usar o camião com o argumento de que os imigrantes estavam numa área de difícil acesso e ressalvou que eles depois foram transferidos para outros veículos de emergência.
Mesmo assim, Maria del Carmen diz que não foi consultada sobre o assunto, pois não permitiria esta acção.
Mas entre o que um e o outro dizem, o que causa verdadeira perplexidade é que nenhum dos muitos turistas que afluem à ilha nesta altura do ano se tenha levantado para reclamar contra este acto desumano, limitando-se a assistir a um tipo de circo moderno que diz muito sobre a sociedade que o consente.

*Publicada no dia 7 de Novembro de 2014

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