terça-feira, 25 de novembro de 2014

A linha (crónica publicada no Novo Jornal*)


A lista de crimes cometidos na Coreia do Norte é longa e impressiona. O desfile de atrocidades há muito que se projecta para além da cortina cinzenta erguida pelo regime. Mas avança impunemente. Até agora. As Nações Unidas aprovaram finalmente uma resolução que condena o país por crimes contra a Humanidade. E que visa levar o regime de Kim Jong-un a sentar-se no Tribunal Penal Internacional.
Na base da resolução, aprovada com 111 votos a favor, 19 contra e 55 abstenções, está um extenso relatório de “violações sistemáticas e generalizadas” dos Direitos Humanos, divulgado em Fevereiro. Um inventário de crimes, que inclui tortura, escravatura, violência sexual, discriminação social e de género, repressão, perseguições políticas e execuções, que deixou a comunidade internacional alarmada.
A morte de Kim Jong-il e a ascensão do seu filho mais novo ao poder não mudou a face do regime. Nem arrefeceu o seu ímpeto de morte. O jovem Kim Jong-un ultrapassou o pai e, no espaço de três anos, coleccionou crimes de sangue e apurou a frieza e crueldade do regime norte-coreano.
O relatório da ONU detalha que uma mulher foi obrigada a afogar o próprio filho, alguns prisioneiros foram forçados a cavar as suas próprias sepulturas antes de serem mortos à martelada no pescoço e uma família foi torturada por ter assistido a uma telenovela estrangeira na televisão.
Crimes desta natureza - que levaram o juiz que presidiu ao grupo de avaliação da ONU a comparar as atrocidades do regime norte-coreano às que foram cometidas pelos nazis, na Alemanha, ou por Pol Pot, no Camboja – não são novidade.
Em Novembro de 2013, os órgãos de informação noticiaram a execução pública de 80 pessoas. Num mesmo dia, milhares de pessoas foram obrigadas a assistir a execuções em sete cidades. Entre a assistência contavam-se inúmeras crianças. Os crimes cometidos incluíam o visionamento de vídeos de entretenimento sul-coreanos e a posse de Bíblias. Alguns dos executados foram acusados de disseminar pornografia.
Uma das execuções terá ocorrido no Estádio de Shinpoong, na província de Kanwon. Oito pessoas foram alinhadas com fardos colocados por cima da cabeça enquanto soldados disparavam de forma ininterrupta. Uma fonte, citada pelo Los Angeles Times e pelo Daily Telegraph, descreve o horror: “Ouvi relatos de residentes que dizem ter visto os cadáveres de tal maneira perfurados pelas balas que depois foi impossível identificá-los”.
Estas execuções, segundo o Daily Telegraph, ocorreram em cidades onde os trabalhadores estariam a desafiar as regras do regime. Terão sido, portanto, uma manobra de intimidação e uma lição para os que se atrevam a desafiar o regime de Kim Jong-un, que controla tudo, desde o lugar onde as pessoas vivem até quem pode trabalhar, onde e no quê.
A má gestão dos recursos e as más políticas públicas condenam a população a uma fome crónica e que é visível nas poucas imagens que chegam ao exterior.
A comissão de inquérito da ONU não tem dúvidas que as violações dos direitos humanos na Coreia do Norte atingem uma “escala sem igual no mundo contemporâneo”, excedendo “em duração, intensidade e horror” todas as outras de que há notícia.
A ONU, após ouvir dezenas de dissidentes, revela a existência de campos de concentração, onde vivem entre 120 a 200 mil prisioneiros, alguns já nascidos em cativeiro, e que são sujeitos “à fome, trabalhos forçados, execuções, tortura, violação, negação dos direitos reprodutivos através de castigos, abortos forçados e infanticídios”.
“No fim da II Guerra Mundial, muita gente disse ‘se nós tivéssemos sabido’. Bem, agora a comunidade internacional sabe… a inacção já não se justifica com um ‘nós não sabíamos”, declarou, em Fevereiro, Michael Kirby, o presidente da comissão independente que conduziu o Inquérito do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre a Coreia do Norte.
Kirby advertiu que “estes não são meros crimes de Estado”. São uma “componente essencial de um sistema político que se afastou dos ideais sobre os quais diz ter sido fundado”.
Nove meses depois, uma resolução dá seguimento ao relatório, e envia uma acusação formal para o Conselho de Segurança. Mas o poder de veto que a China e a Rússia, dois tradicionais aliados da Coreia do Norte, têm no Conselho de Segurança pode inviabilizar a pretensão de justiça da esmagadora maioria dos Estados representados na ONU. A acontecer, exporá a conivência destes dois países e servirá para traçar uma linha e a posição em que os dois se colocam face à barbárie.

* Publicada no dia 21 de Novembro de 2014

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