quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A desconfiança e o abraço (crónica publicada no Novo Jornal*)


A Alemanha homenageou quarta-feira a jovem turca que morreu, depois de defender duas adolescentes que estavam a ser assediadas por um grupo de três homens na casa de banho de um restaurante em Offenbach, a poucos quilómetros de Frankfurt.
O funeral de Tugce Albayrak, que esteve duas semanas em coma, emocionou a Alemanha e desencadeou uma onda de comoção. A sua morte tornou-se um símbolo contra a indiferença. Ao contrário de outras pessoas que se encontravam no restaurante e que ignoraram os gritos, a jovem universitária foi em socorro das adolescentes e impediu que o assédio se transformasse em agressão.
Mas Tugce pagou caro pela coragem e por um acto de civismo que devia ser corrente. O grupo esperou-a no parque de estacionamento e, mal ela saiu, agrediram-na cobardemente. As câmaras de vigilância registaram a agressão e o momento em que Tugce é atirada para o chão, caindo desamparada no alcatrão. A jovem não acordou mais. A família autorizou que as máquinas que a mantinham artificialmente viva fossem desligadas no dia em que fazia 23 anos.
As imagens de Tugce a ser agredida passaram vezes sem conta nas televisões. Criaram uma revolta surda na comunidade turca, que depressa saltou para a rua. Milhares de alemães e cidadãos de outras nacionalidades organizaram-se em vigílias de homenagem à jovem que será recordada como “um exemplo a seguir”, como afirmou o Presidente alemão, Joachim Gauck, depois de ter mostrado “uma coragem exemplar e fortaleza moral” quando outras pessoas “olharam para o lado”.
A coragem de Tugce permitiu também à Alemanha olhar para si mesma e desencadeou uma nova reflexão sobre a imigração e os imigrantes, frequentemente olhados com desconfiança. No momento em que a crise na Europa fez crescer a hostilidade contra os imigrantes, a nova heroína alemã tem sangue turco.
Antes do funeral da jovem, que queria ser professora de alemão, uma petição para que receba a título póstumo a medalha de honra nacional já contava com milhares de assinaturas. É fácil perceber que o objectivo será atingido e que Tugce terá oficialmente o estatuto de heroína. Mas é triste se o gesto pelo qual sacrificou a vida morre com ela. É preciso que a sociedade recuse, de uma vez por todas, a indiferença contra a violência gratuita e desproporcionada e contra o desrespeito pela condição humana. Senão, muitas mais vidas continuarão a perder-se. Por nada.
No inferno desencadeado pela morte de um jovem negro em Ferguson, no meio de carros a arder, barricadas e protestos, a imagem de um polícia branco a abraçar um rapaz negro a chorar tornou-se icónica. E depressa ultrapassou fronteiras, apaziguando por momentos a tensão racial desencadeada há uma semana pela decisão da justiça norte-americana de não indiciar o polícia branco que matou Michael Brown, de 18 anos.
As televisões e jornais em todo o mundo seguiram o trajecto que levou o sargento Bret Barnum a Devonte Hart, de 12 anos. O polícia estava a olhar para os manifestantes à sua frente quando deparou com um menino a soluçar e a limpar as lágrimas à camisola.
A cena passou-se em Portland, a três mil quilómetros de Ferguson. Devonte foi com a família para a rua juntar-se aos protestos que tiveram lugar em várias cidades do país. Ao ver a criança a chorar, o sargento Barnum, com mais de 21 anos de serviço, aproximou-se. O primeiro contacto foi frio, como descreveu a mãe do rapaz. Mas o polícia não se intimidou. Apertou a mão ao garoto e fez-lhe perguntas sobre a escola. Durante uns momentos trocaram conversa e, antes de se ir embora, Barnum apontou para o cartaz e perguntou ao menino: “Não tenho direito a um?” Devonte disse que sim e o polícia abraçou o menino, ainda em lágrimas. O fotógrafo freelancer Johnny Nguyen não deixou escapar o momento e disparou. A fotografia tornou-se viral e foi comentada em todo o mundo.
A fotografia de Johnny dá o outro da história que desencadeou os protestos. “É a luz no meio da escuridão”, disse o repórter durante uma entrevista à revista portuguesa Sábado. Mas ela representa mais. É o triunfo da esperança e tem um significativo político forte. Devonte não é uma criança com uma história normal. Foi adoptado pela família Hart depois de anos de episódios ligados à droga e à extrema pobreza, onde se habituou a desconfiar da polícia.
Se uma criança conseguiu ultrapassar a desconfiança, porque não hão-de os adultos conseguir?

*Publicada no dia 5 de Dezembro de 2014

Sem comentários:

Enviar um comentário