sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Um dia da História (crónica publicada no Novo Jornal*)


“Lucía tem razões para chorar; minha mãe, para dar graças ao pobre e leproso São Lázaro; eu e muitos cubanos em nos sentirmos aturdidos, mas felizes por estarmos despertos. Esta é a realidade: Cuba e EUA anunciam que restabelecerão relações. Um dia para ficar na história. Uma porta que se abre para um futuro que, necessariamente, terá que ser melhor. Com todos e para o bem de todos, como disse certa vez José Martí”.
O escritor cubano Leonardo Padura rematou, assim, a sua coluna no jornal Folha de S. Paulo. Palavras de gratidão que resumem em seis parágrafos o sentimento partilhado por muitos cubanos pelo fim do vergonhoso conflito que opôs, durante cinco décadas, dois povos vizinhos.
A mulher de Padura chorou com o anúncio feito esta terça-feira por Raúl Castro e Barack Obama. Lucía nasceu em 1959. O seu pai emigrou para os EUA quando ela “era jovem demais para guardar uma lembrança”. Não voltou a vê-lo. Ele nunca regressou a Cuba, porque não podia e ela, quando finalmente, nos anos 1990, viajou para os EUA já não o encontrou. O pai tinha morrido.
“Lucía chorou hoje por seu pai perdido, por ela e seu amor encerrado em si mesmo, por tantas histórias tristes que vivemos. Mas chorou também pela ilusão de que, a partir de hoje, essas histórias talvez nunca voltem a se repetir”, escreveu Padura.
Aos 86 anos, a mãe do autor de «O Homem que gostava de cães» nunca acreditou que veria o dia em que Cuba e os EUA “passassem por cima de todas as suas diferenças políticas e históricas” e que os seus governos “se dispusessem a estender-se as mãos”.
Fernando, por sua parte, escreveu. Escreveu aturdido. “Ainda me parece que estou no meio de um sonho, quando na realidade acordei de um pesadelo que nos perseguiu por tantos anos, o pesadelo da hostilidade, do desencontro, da inimizade entre os dois países que a partir de hoje podem encontrar seus pontos de confluência mais que suas declarações de diferença”.
No meio da alegria, há quem encontre motivos para reprovação. Quem não valorize o gesto de conciliação e opte pela desconfiança porque continua a ver o mundo a preto e branco. Mas esses não fazem a história. Deixai-os estar. O momento é de festa.
“Dois presidentes conversam, acordam, concedem. Os prisioneiros retornam às suas famílias. Anuncia-se o começo do fim do bloqueio/embargo, após 52 anos. Diálogo em lugar de ofensas. Vontade de entender-se, de mudar, de superar o ódio… Um presidente cubano que anuncia medidas mútuas para normalizar os vínculos entre os dois países. Um presidente norte-americano que faz história, entra para a história, quando admite que estamos mudando nem mais nem menos que a História, simplesmente porque é certo”, conclui Padura.
Um momento da História em que confluem dois grandes homens – Papa Francisco, o conciliador, e Barack Obama, o pacifista, que a Academia Sueca premiou, cedo de mais, disseram muitos. Justamente, por antecipação, contrapuseram outros tantos.
Um dia depois de Cuba e os EUA reatarem relações, há quem considere que esta aproximação significou o fim definitivo da guerra fria. Para outros foi o primeiro milagre do Papa que veio do “fim do mundo”. Mas é também fruto do legado de Nelson Mandela, protagonista da grande reconciliação do mundo contemporâneo. É preciso não esquecer que o primeiro aperto de mão que Raul Castro e Barack Obama deram foi no funeral de Madiba. Mesmo na morte, o gigante humanista falou. E da sua voz brotou um apelo à paz que era essencial para enfrentar os desafios que se colocam hoje ao mundo, com a expansão do extremismo islâmico e onde não há lugar para os argumentos que ainda mantinham Cuba e os EUA de costas voltadas.
Ambos enfrentam na actualidade um perigo comum, que ameaça a liberdade, a democracia e os fundamentos do Estado de direito. Que mata indiscriminadamente crianças no Paquistão e no Afeganistão, só porque vão à escola; mulheres no Iraque e na Síria só porque se recusam a casar; populações inteiras, só porque professam outra religião; e todos aqueles que não se subjugam ao fervor religioso baseado no terror.
Perante a nova ameaça que alastra perigosamente e que o mundo ainda não sabe como travar não há lugar para a arrogância.
O dia em que Cuba e os EUA fizeram as pazes atira para um lugar importante na História, Raúl, Barack e Francisco. Agora é preciso saber se a história do mundo muda no advir por causa dele.

*Publicada no dia 19 de Dezembro de 2014

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