quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A verdade (crónica publicada no Novo Jornal*)

 

O que apresenta de verdadeiramente novo o relatório do Senado norte-americano sobre o programa de interrogatórios da CIA a suspeitos de terrorismo? Nada.
Não há nada de novo a não ser o facto de, pela primeira vez, um documento oficial reconhecer que a CIA praticou actos de tortura durante interrogatórios, o que, à partida, inquina os resultados dessas diligências, como é do senso comum e da literatura científica e policial.
Ainda assim, os pormenores detalhados no extenso relatório de 6000 páginas, resultado de cinco anos e oito meses de trabalho, causam arrepios.
Os homens que eram postos sob suspeita durante a vigência do programa de detenção e interrogatórios da CIA, suspenso em 2009 por Barack Obama, foram sujeitos às mais horrendas formas de tortura. O programa promovia a sua despersonalização e desumanização, como comprovam inúmeras fotografias tiradas nas prisões de Guantánamo, em Cuba, e Abu Ghraib, no Iraque, e era do conhecimento do Presidente George W. Bush que, na guerra que declarou contra o terrorismo, derrubou todos os tratados e convenções internacionais.
A guerra contra o mal de Bush foi, em si mesma, a encarnação do mal e levou mais longe uma cultura que há muito estava enraizada na agência de inteligência norte-americana, a CIA, bem como noutros organismos, como o FBI, como atestam as várias biografias do seu fundador e primeiro director, John Edgar Hoover, e chegou aos nossos dias, através da NSA.
Uma cultura de violência, chantagem e extorsão encarnada em Hoover que, graças a ela, conseguiu tornar-se uma das personalidades mais poderosas dos EUA. Sempre que um novo Presidente era eleito, o homem que dirigiu o FBI durante 48 anos tratava de juntar um dossier dos dados pessoais e familiares do novo inquilino da Casa Branca, mantendo-o, assim, refém da sua vontade.
Foi, graças à chantagem e destruição de carácter, formalmente assumida no programa clandestino COINTELPRO, que ficou conhecido como «Dirty Tricks» (Jogos sujos), que Hoover destruiu os seus adversários.
O programa de sabotagem e chantagem, intimidação e perseguição de indivíduos e grupos escolhidos por Hoover era realizado pelo próprio FBI e pelos seus agentes e atingiu pessoas que se limitavam a protestar, como John Lennon, no caso da guerra do Vietname, Martin Luther King e Charlie Chaplin.
Os métodos usados incluíam infiltração em movimentos pacifistas, roubos, escutas telefónicas invasão domiciliar e uma série de operações clandestinas ofensivas e ilegais, profusamente retratada por Hollywood, que incluía a incitação à violência e o assassinato.
O programa foi exposto em 1971, depois do roubo de documentos secretos, e quatro anos depois foi investigado por um comité que considerou as actividades do COINTELPRO ilegais.
De dirigente da maior força policial do mundo, Hoover tornou-se um criminoso refinado e o FBI transformou-se numa força que, em vez de perseguir criminosos, passava o tempo a censurar o telefone de congressistas e a perseguir líderes do movimento negro. Morreu sem glória, mas deixou uma cultura enraizada. E que perdura.
A forma como o ex-vice-presidente Dick Cheney reagiu ao relatório sobre o programa de interrogatórios da CIA é prova disso mesmo. Em vez de um mea culpa, o vice de George W. Bush defendeu o recurso à tortura. “O que era suposto fazermos? Beijá-lo nas bochechas e dizer ‘Por favor, diga-nos tudo o que sabe’”, reagiu Cheney, insistindo que o recurso à tortura nos interrogatórios a suspeitos de terrorismo foi justificado e que o relatório divulgado pelo Senado está “repleto de porcarias”.
Enquanto no Brasil, a Presidente Dilma Rousseff reagiu ao uso da tortura durante a ditadura militar com lágrimas, nos EUA, o vice-presidente de Bush reagiu com cinismo, demonstrando como é perigoso o exercício do poder sem sentido de humanismo.
Barack Obama recebeu um legado pesado do seu antecessor, no capítulo dos direitos humanos, e tem aqui uma prova de fogo. Da forma como reagir depende o papel dos EUA no futuro, não só no conselho de segurança das Nações Unidas, mas também na luta contra o terrorismo.
É que as armas que os EUA condenam, não podem por eles ser usadas. Senão há uma “dupla moral” que deslegitima tudo e todos, como observou o líder da Coreia do Norte. Kim Jong-il pede à ONU que aja contra os EUA por uso de tortura. Quem o pode censurar?

* Publicada no dia 12 de Dezembro de 2014

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