O que apresenta de verdadeiramente novo o relatório do
Senado norte-americano sobre o programa de interrogatórios da CIA a suspeitos
de terrorismo? Nada.
Não há nada de novo a não ser o facto de, pela primeira vez,
um documento oficial reconhecer que a CIA praticou actos de tortura durante
interrogatórios, o que, à partida, inquina os resultados dessas diligências,
como é do senso comum e da literatura científica e policial.
Os homens que eram postos sob suspeita durante a vigência do
programa de detenção e interrogatórios da CIA, suspenso em 2009 por Barack Obama,
foram sujeitos às mais horrendas formas de tortura. O programa promovia a sua
despersonalização e desumanização, como comprovam inúmeras fotografias tiradas
nas prisões de Guantánamo, em Cuba, e Abu Ghraib, no Iraque, e era do
conhecimento do Presidente George W. Bush que, na guerra que declarou contra o
terrorismo, derrubou todos os tratados e convenções internacionais.
A guerra contra o mal de Bush foi, em si mesma, a encarnação
do mal e levou mais longe uma cultura que há muito estava enraizada na agência
de inteligência norte-americana, a CIA, bem como noutros organismos, como o
FBI, como atestam as várias biografias do seu fundador e primeiro director, John
Edgar Hoover, e chegou aos nossos dias, através da NSA.
Uma cultura de violência, chantagem e extorsão encarnada em
Hoover que, graças a ela, conseguiu tornar-se uma das personalidades mais
poderosas dos EUA. Sempre que um novo Presidente era eleito, o homem que
dirigiu o FBI durante 48 anos tratava de juntar um dossier dos dados pessoais e
familiares do novo inquilino da Casa Branca, mantendo-o, assim, refém da sua
vontade.
Foi, graças à chantagem e destruição de carácter,
formalmente assumida no programa clandestino COINTELPRO, que ficou conhecido
como «Dirty Tricks» (Jogos sujos), que Hoover destruiu os seus adversários.
O programa de sabotagem e chantagem, intimidação e
perseguição de indivíduos e grupos escolhidos por Hoover era realizado pelo
próprio FBI e pelos seus agentes e atingiu pessoas que se limitavam a
protestar, como John Lennon, no caso da guerra do Vietname, Martin Luther King
e Charlie Chaplin.
Os métodos usados incluíam infiltração em movimentos
pacifistas, roubos, escutas telefónicas invasão domiciliar e uma série de
operações clandestinas ofensivas e ilegais, profusamente retratada por
Hollywood, que incluía a incitação à violência e o assassinato.
O programa foi exposto em 1971, depois do roubo de
documentos secretos, e quatro anos depois foi investigado por um comité que
considerou as actividades do COINTELPRO ilegais.
De dirigente da maior força policial do mundo, Hoover
tornou-se um criminoso refinado e o FBI transformou-se numa força que, em vez
de perseguir criminosos, passava o tempo a censurar o telefone de congressistas
e a perseguir líderes do movimento negro. Morreu sem glória, mas deixou uma
cultura enraizada. E que perdura.
A forma como o ex-vice-presidente Dick Cheney reagiu ao relatório sobre o programa de
interrogatórios da CIA é prova disso mesmo. Em vez de um mea culpa, o vice de
George W. Bush defendeu o recurso à tortura. “O que era suposto fazermos? Beijá-lo
nas bochechas e dizer ‘Por favor, diga-nos tudo o que sabe’”, reagiu Cheney,
insistindo que o recurso à tortura nos interrogatórios a suspeitos de
terrorismo foi justificado e que o relatório divulgado pelo Senado está
“repleto de porcarias”.
Enquanto no Brasil, a Presidente Dilma Rousseff reagiu ao
uso da tortura durante a ditadura militar com lágrimas, nos EUA, o
vice-presidente de Bush reagiu com cinismo, demonstrando como é perigoso o
exercício do poder sem sentido de humanismo.
Barack Obama recebeu um legado pesado do seu antecessor, no
capítulo dos direitos humanos, e tem aqui uma prova de fogo. Da forma como
reagir depende o papel dos EUA no futuro, não só no conselho de segurança das
Nações Unidas, mas também na luta contra o terrorismo.
É que as armas que os EUA condenam, não podem por eles ser
usadas. Senão há uma “dupla moral” que deslegitima tudo e todos, como observou
o líder da Coreia do Norte. Kim Jong-il pede à ONU que aja contra os EUA por
uso de tortura. Quem o pode censurar?
* Publicada no dia 12 de Dezembro de 2014
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