A liberdade não tem preço. Nem é um produto passível de transação.
Ela é resultado de anos e anos de conquistas. Séculos de progresso material e
de desenvolvimento do espírito humano. Um bem da Humanidade posta ao seu
serviço, que não pode recuar, mesmo perante os canos de uma metralhadora.
Não espanta que, de norte a sul do planeta, a frase “Eu sou
Charlie” se tenha tornado um lema comum. Um compromisso partilhado por milhões
de pessoas que rejeitam a intimidação.
“Eu não tenho filhos, mulher, carro ou crédito. Talvez seja
um pouco pomposo o que eu vou dizer, mas prefiro morrer de pé do que viver de
joelhos”. Repetindo uma frase que celebrizou Dolores Ibárruri, durante a Guerra
Civil espanhola, o cartoonista Charb reagiu, desta forma, em 2011, ao atentado
contra as instalações do jornal que dirigia, depois da republicação de cartoons
dinamarqueses que, segundo os muçulmanos, insultavam o profeta Maomé. O jornal
foi ameaçado, as suas instalações incendiadas à bomba, mas a redacção não se
deixou intimidar. Reconstruiu-se com a ajuda de jornais franceses, que
emprestaram instalações para que a equipa do Charlie Hebdo pudesse trabalhar, e
fez do extremismo islâmico um tema recorrente.
No Charlie Hebdo não havia temas tabu, nem vacas sagradas. O
humor não tem restrições e é uma “forma de reclamarmos a nossa humanidade”,
como defende John Stewart, um humorista que diz coisas sérias a brincar, no seu
«Daily Show», um dos programas de maior audiência nos EUA.
Políticos, artistas, barões, religiões, todos visados pelo olhar
mordaz do Charlie Hebdo, pelo traço firme dos seus cartoonistas, pela
acutilância da equipa de cronistas, que abarcava um largo espectro político e
social. Era um título incómodo, por vezes, insolente; mas nunca gratuitamente.
Havia sempre um propósito, mesmo com aquela que parecia ser uma obstinação sua:
o islão.
“É preciso brincar com o islão até que esteja tão banalizado
como o catolicismo”, explicou Charb, depois da publicação das caricaturas de
Maomé, que tornou o jornal conhecido em todo o globo por causa da reacção dos
muçulmanos. “Se acharem que a religião é intocável, estamos todos lixados”,
insistia o director do Charlie Hebdo, recusando a ideia de que o título conduzisse
uma cruzada contra o mundo islâmico.
Era uma cruzada contra o extremismo, pela liberdade, consciente
de que a “sátira é uma força contra a tirania”, como resumiu, quarta-feira, o
escritor Salman Rushdie, condenado à morte pelo regime iraniano, em 1989, por
causa do livro «Os versos satânicos».
Charb, Cabu, Wolinski e Tignous morreram, mas há outros
cartoonistas prontos a substituí-los. Bernard Maris e Elsa perderam a vida, mas
outros colunistas estão prontos para avançar. Phillippe Honoré não resistiu às
balas, outro desenhista vai tomar o seu lugar, assim como um novo revisor está
disposto a dar continuidade ao trabalho de Mustapha Ourad. Mesmo com lágrimas
nos olhos e dor na voz, Patrick Pelloux anunciou o regresso do jornal às
bancas.
“É muito duro, todos com pesar, com a nossa dor, os nossos
medos, mas vamos fazê-lo de qualquer forma, porque não é a estupidez que vai
ganhar. Charb sempre disse que o jornal tinha de sair, custasse o que custasse”,
afirmou o cronista, que é médico e foi uma das primeiras pessoas a chegar à
redacção para socorrer os feridos.
Os elementos da equipa que escaparam à tragédia ainda não
sabem de que forma o Charlie Hebdo vai sair para as bancas na próxima quarta-feira.
Mais uma vez, contam com a solidariedade e ajuda de todos os jornais, rádios,
televisões e agências de notícias de França que, em comunicado, anunciaram a total
disponibilidade para oferecer dinheiro e ceder funcionários para que o Charlie
Hebdo “continue a viver”.
E contam com a solidariedade de milhões em todo o mundo, que
não permitem que a liberdade seja assassinada. Nem que ceda ao terror.
*Publicada no dia 9 de Janeiro de 2015
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