terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O Charlie vive (crónica publicada no Novo Jornal*)


A liberdade não tem preço. Nem é um produto passível de transação. Ela é resultado de anos e anos de conquistas. Séculos de progresso material e de desenvolvimento do espírito humano. Um bem da Humanidade posta ao seu serviço, que não pode recuar, mesmo perante os canos de uma metralhadora.
Os terroristas que, quarta-feira, atacaram o Charles Hebdo julgaram ter silenciado o jornal. Pensaram ter matado os valores da República, que proclamou há três séculos a Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Mas o assassinato de Stéphane Charbonnier «Charb», Jean Cabut «Cabu», Georges Wolinski, Bernard Verlhac «Tignous», Bernard Maris, Elsa Cayat, Phillippe Honoré, Mustapha Ourad, Michel Renaud, Frédéric Boisseau, Franck Binsolaro e Ahmed Merabet não foi em vão. Ele lançou um grito pela liberdade, que ecoou por todo o mundo.
Não espanta que, de norte a sul do planeta, a frase “Eu sou Charlie” se tenha tornado um lema comum. Um compromisso partilhado por milhões de pessoas que rejeitam a intimidação.
“Eu não tenho filhos, mulher, carro ou crédito. Talvez seja um pouco pomposo o que eu vou dizer, mas prefiro morrer de pé do que viver de joelhos”. Repetindo uma frase que celebrizou Dolores Ibárruri, durante a Guerra Civil espanhola, o cartoonista Charb reagiu, desta forma, em 2011, ao atentado contra as instalações do jornal que dirigia, depois da republicação de cartoons dinamarqueses que, segundo os muçulmanos, insultavam o profeta Maomé. O jornal foi ameaçado, as suas instalações incendiadas à bomba, mas a redacção não se deixou intimidar. Reconstruiu-se com a ajuda de jornais franceses, que emprestaram instalações para que a equipa do Charlie Hebdo pudesse trabalhar, e fez do extremismo islâmico um tema recorrente.
No Charlie Hebdo não havia temas tabu, nem vacas sagradas. O humor não tem restrições e é uma “forma de reclamarmos a nossa humanidade”, como defende John Stewart, um humorista que diz coisas sérias a brincar, no seu «Daily Show», um dos programas de maior audiência nos EUA.
Políticos, artistas, barões, religiões, todos visados pelo olhar mordaz do Charlie Hebdo, pelo traço firme dos seus cartoonistas, pela acutilância da equipa de cronistas, que abarcava um largo espectro político e social. Era um título incómodo, por vezes, insolente; mas nunca gratuitamente. Havia sempre um propósito, mesmo com aquela que parecia ser uma obstinação sua: o islão.
“É preciso brincar com o islão até que esteja tão banalizado como o catolicismo”, explicou Charb, depois da publicação das caricaturas de Maomé, que tornou o jornal conhecido em todo o globo por causa da reacção dos muçulmanos. “Se acharem que a religião é intocável, estamos todos lixados”, insistia o director do Charlie Hebdo, recusando a ideia de que o título conduzisse uma cruzada contra o mundo islâmico.
Era uma cruzada contra o extremismo, pela liberdade, consciente de que a “sátira é uma força contra a tirania”, como resumiu, quarta-feira, o escritor Salman Rushdie, condenado à morte pelo regime iraniano, em 1989, por causa do livro «Os versos satânicos».
Charb, Cabu, Wolinski e Tignous morreram, mas há outros cartoonistas prontos a substituí-los. Bernard Maris e Elsa perderam a vida, mas outros colunistas estão prontos para avançar. Phillippe Honoré não resistiu às balas, outro desenhista vai tomar o seu lugar, assim como um novo revisor está disposto a dar continuidade ao trabalho de Mustapha Ourad. Mesmo com lágrimas nos olhos e dor na voz, Patrick Pelloux anunciou o regresso do jornal às bancas.
“É muito duro, todos com pesar, com a nossa dor, os nossos medos, mas vamos fazê-lo de qualquer forma, porque não é a estupidez que vai ganhar. Charb sempre disse que o jornal tinha de sair, custasse o que custasse”, afirmou o cronista, que é médico e foi uma das primeiras pessoas a chegar à redacção para socorrer os feridos.
Os elementos da equipa que escaparam à tragédia ainda não sabem de que forma o Charlie Hebdo vai sair para as bancas na próxima quarta-feira. Mais uma vez, contam com a solidariedade e ajuda de todos os jornais, rádios, televisões e agências de notícias de França que, em comunicado, anunciaram a total disponibilidade para oferecer dinheiro e ceder funcionários para que o Charlie Hebdo “continue a viver”.
E contam com a solidariedade de milhões em todo o mundo, que não permitem que a liberdade seja assassinada. Nem que ceda ao terror.

*Publicada no dia 9 de Janeiro de 2015

Sem comentários:

Enviar um comentário