Os pobres alimentam os ricos, pracadobocage.worldpress.com
Depois de ter aprovado, em Julho, uma lei que dá aos
municípios poder para proibirem a mendicidade a nível local, o governo
norueguês ficou sozinho na decisão de alargar a proibição ao território
nacional.
A medida não se limitava a punir a “mendicidade organizada”.
Alargava as sanções, com até um ano de prisão, a quem ajudasse os sem-abrigo.
Mas a intenção do governo de Erna Solberg não foi bem recebida. Causou
indignação e a reprovação geral dos noruegueses que aproveitaram as redes
sociais para fazer eco da sua revolta, o que levou o Partido Centrista a recuar
e a retirar o seu apoio.
“Castigar a colaboração com a mendicidade não é aceitável.
Não pode ser punível dar roupa às pessoas, comida ou alojamento”, afirmou Marit
Arnstad, líder parlamentar dos centristas, justificando a decisão de deixar o
governo norueguês a falar sozinho.
A decisão de proibir a mendicidade não é coisa nova, mas o pacote
que Erna Solberg preparou na Noruega não tem o alcance revolucionário da
proposta ensaiada pelo Conde de Abranhos, político criado por Eça de Queiroz,
no romance com o mesmo nome, e que reúne, em forma de caricatura, os defeitos
dos políticos de todos os tempos.
Nascido no ano de 1826, numa aldeia rural do norte de
Portugal, e criado por uma madrinha rica, Alípio Abranhos odiava a pobreza e
todos os seus aspectos, ficando “todo o dia enjoado” sempre que se deparava com
quem lhe pedia uma esmola “sob o pretexto de filhos com fome ou de membros
aleijados”.
Por isso, Abranhos defendia que se tirasse os pobres da
vista, recolhendo-os a uma instituição – o “Recolhimento dos Desvalidos”, onde
“tendo provado com bons documentos a sua miséria, tendo apresentado bons
atestados de moralidade, recebessem do Estado, sob a superintendência de homens
práticos e despidos de vãs piedades, um tecto contra a chuva e um caldo contra
a fome”.
O pobre, segundo Alípio, que censurava a “caridade privada,
sentimental, toda de espontaneidade”, devia, pois, viver ali “separado, isolado
da sociedade, e não ser admitido a vir perturbar com a expressão da sua face
magra e com a narração exagerada das suas necessidades, as ruas da cidade”.
“«Isole-se o pobre!», dizia ele um dia na Câmara dos
Deputados, sintetizando o seu magnífico projecto para a criação dos
Recolhimentos do Trabalho”. O Estado encarregar-se-ia de fornecer “grandes
casarões, com celas providas de enxerga”, onde eram acolhidos os miseráveis.
Para conseguir admissão e protecção, os pobres e desvalidos
tinham que cumprir requisitos. Provar que mereciam a bênção superior do Estado,
segundo as memórias de Alípio, escritas pelo seu secretário pessoal, na qual o
conde é alcandorado ao estatuto de herói, apesar de nada ter feito que
merecesse a distinção, a não ser ajustar-se aos ventos e às marés para embarcar
nas graças dos partidos e assim ascender ao poder e aos bens do Estado.
Finda a divagação, retomemos o fio à meada.
Para conseguir a admissão, os pobres deveriam provar ser de “maior
idade”, ter “cumprido os seus deveres religiosos”, não terem sido “condenados
pelos tribunais (para evitar que operários de ideias subversivas que, pela
greve e pelo deboche, tramam a destruição do Estado, viessem, em dia de
miséria, pedir a esse mesmo Estado que os recolhesse)”.
Deveriam ainda “provar a sobriedade dos seus costumes, nunca
terem vivido amancebados nem possuírem o hábito de praguejar e blasfemar”.
Reconhecidas estas “qualidades elevadas com documentos dos párocos, dos
regedores, etc., seria dada a cada miserável uma cela e uma ração de caldo
igual à que têm os presos”.
Mas, interrogar-se-iam os mais incautos: o Estado
sustentaria esta horda de graça? A pergunta não apanharia Alípio desprevenido,
como revelam as páginas do seu “admirável regulamento”, onde está escrito,
linha após linha, que “com um profundo sentimento dos deveres do cidadão para
com a cidade”, todo o “pobre seria forçado a uma considerável soma de trabalho,
segundo as suas aptidões”. Além do mais, dali já não sairia a não ser que
provasse que tinha arranjado emprego.
“Em nenhuma legislação humana conheço instituição tão justa,
tão eficaz, tão profundamente cristã, tão beneficamente social”, destaca o
secretário de Alípio. Perto dela, a iniciativa do governo norueguês é remetida
para um canto. Ah, pois!
*Publicada no dia 6 de Fevereiro de 2015
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