quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Pobres!!! (crónica publicada no Novo Jornal*)

                                                             Os pobres alimentam os ricos, pracadobocage.worldpress.com

Depois de ter aprovado, em Julho, uma lei que dá aos municípios poder para proibirem a mendicidade a nível local, o governo norueguês ficou sozinho na decisão de alargar a proibição ao território nacional.
A medida não se limitava a punir a “mendicidade organizada”. Alargava as sanções, com até um ano de prisão, a quem ajudasse os sem-abrigo. Mas a intenção do governo de Erna Solberg não foi bem recebida. Causou indignação e a reprovação geral dos noruegueses que aproveitaram as redes sociais para fazer eco da sua revolta, o que levou o Partido Centrista a recuar e a retirar o seu apoio.
O apoio dos centristas era essencial para fazer passar a proposta, uma vez que os democratas cristãos e os liberais, tradicionais aliados do governo, já tinham manifestado intenção de votar contra.
“Castigar a colaboração com a mendicidade não é aceitável. Não pode ser punível dar roupa às pessoas, comida ou alojamento”, afirmou Marit Arnstad, líder parlamentar dos centristas, justificando a decisão de deixar o governo norueguês a falar sozinho.
A decisão de proibir a mendicidade não é coisa nova, mas o pacote que Erna Solberg preparou na Noruega não tem o alcance revolucionário da proposta ensaiada pelo Conde de Abranhos, político criado por Eça de Queiroz, no romance com o mesmo nome, e que reúne, em forma de caricatura, os defeitos dos políticos de todos os tempos.
Nascido no ano de 1826, numa aldeia rural do norte de Portugal, e criado por uma madrinha rica, Alípio Abranhos odiava a pobreza e todos os seus aspectos, ficando “todo o dia enjoado” sempre que se deparava com quem lhe pedia uma esmola “sob o pretexto de filhos com fome ou de membros aleijados”.
Por isso, Abranhos defendia que se tirasse os pobres da vista, recolhendo-os a uma instituição – o “Recolhimento dos Desvalidos”, onde “tendo provado com bons documentos a sua miséria, tendo apresentado bons atestados de moralidade, recebessem do Estado, sob a superintendência de homens práticos e despidos de vãs piedades, um tecto contra a chuva e um caldo contra a fome”.
O pobre, segundo Alípio, que censurava a “caridade privada, sentimental, toda de espontaneidade”, devia, pois, viver ali “separado, isolado da sociedade, e não ser admitido a vir perturbar com a expressão da sua face magra e com a narração exagerada das suas necessidades, as ruas da cidade”.
“«Isole-se o pobre!», dizia ele um dia na Câmara dos Deputados, sintetizando o seu magnífico projecto para a criação dos Recolhimentos do Trabalho”. O Estado encarregar-se-ia de fornecer “grandes casarões, com celas providas de enxerga”, onde eram acolhidos os miseráveis.
Para conseguir admissão e protecção, os pobres e desvalidos tinham que cumprir requisitos. Provar que mereciam a bênção superior do Estado, segundo as memórias de Alípio, escritas pelo seu secretário pessoal, na qual o conde é alcandorado ao estatuto de herói, apesar de nada ter feito que merecesse a distinção, a não ser ajustar-se aos ventos e às marés para embarcar nas graças dos partidos e assim ascender ao poder e aos bens do Estado.
Finda a divagação, retomemos o fio à meada.
Para conseguir a admissão, os pobres deveriam provar ser de “maior idade”, ter “cumprido os seus deveres religiosos”, não terem sido “condenados pelos tribunais (para evitar que operários de ideias subversivas que, pela greve e pelo deboche, tramam a destruição do Estado, viessem, em dia de miséria, pedir a esse mesmo Estado que os recolhesse)”.
Deveriam ainda “provar a sobriedade dos seus costumes, nunca terem vivido amancebados nem possuírem o hábito de praguejar e blasfemar”. Reconhecidas estas “qualidades elevadas com documentos dos párocos, dos regedores, etc., seria dada a cada miserável uma cela e uma ração de caldo igual à que têm os presos”.
Mas, interrogar-se-iam os mais incautos: o Estado sustentaria esta horda de graça? A pergunta não apanharia Alípio desprevenido, como revelam as páginas do seu “admirável regulamento”, onde está escrito, linha após linha, que “com um profundo sentimento dos deveres do cidadão para com a cidade”, todo o “pobre seria forçado a uma considerável soma de trabalho, segundo as suas aptidões”. Além do mais, dali já não sairia a não ser que provasse que tinha arranjado emprego.
“Em nenhuma legislação humana conheço instituição tão justa, tão eficaz, tão profundamente cristã, tão beneficamente social”, destaca o secretário de Alípio. Perto dela, a iniciativa do governo norueguês é remetida para um canto. Ah, pois!

*Publicada no dia 6 de Fevereiro de 2015

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