terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Fanatismos (crónica publicada no Novo Jornal*)


Em 1616, o Papa Urbano VIII recebeu Galileu Galilei e ofereceu-lhe honrarias, dinheiro e recomendações para que o físico e matemático italiano aprofundasse os estudos sobre a teoria heliocêntrica, desenvolvida um século antes por Copérnico, na expectativa de a contrariar, repondo, assim a teoria teocêntrica ou geocêntrica no seu devido lugar.
Não convinha à Igreja a ideia desenvolvida por Copérnico porque ela punha em causa a filosofia defendida pelos católicos, segundo a qual a terra estaria no centro do universo.
Galileu assumiu a tarefa, em nome da ciência e, em 1632, publicou o livro «Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo», onde defendia o sistema heliocêntrico de Copérnico, em que o sol surge no centro do universo com a terra a girar em torno dele.
Como a obra não correspondia à sua expectativa, o Papa convocou Galileu para ser julgado por heresia, no Tribunal da Santa Inquisição. O físico foi condenado a abjurar (negar) publicamente as suas ideias e a recolher à prisão. Os seus livros foram incluídos no Index (lista negra da Inquisição) para serem queimados e a sua divulgação foi impedida. Galileu acabou por ver a pena de prisão comutada a confinamento e, reza a lenda, à saída do tribunal, soltou a célebre frase: “Contudo, ela se move”.
Quatro séculos depois, em 2000, o Papa João Paulo II emitiu um pedido formal de desculpas por todos os erros cometidos pela Igreja Católica nos últimos dois mil anos, incluindo o julgamento de Galileu. No perdão está incluída a condenação à morte do teólogo e filósofo Giordano Bruno, por defender erros teológicos, nos quais se incluía o teocentrismo. Giordano foi queimado vivo em 1600.
No dia 25 de Janeiro, os gregos elegeram um governo que contraria o discurso dominante da austeridade imposto pela crise e pela ditadura do mercado, que levou à asfixia vários países da zona Euro, deixando sem pão para a boca milhares de famílias.
“Mais do que um grito de protesto contra a austeridade, mais do que uma revolução nacional, mais do que um manguito aos credores, a eleição do Syriza na Grécia por uma confortável maioria foi, para todos os europeus, uma lufada de ar fresco. Porque, até agora, a União Europeia não tem poupado esforços para nos fazer crer que não há alternativas ao status quo, que, se não estamos bem assim, poderíamos certamente estar pior, e que, afinal, a troika é nossa amiga”, escreve Patrícia Veiga.
E agora? Interroga a professora na Universidade de Georgetown, nos EUA, fazendo-se porta-voz de muitos eleitores, não só gregos, como noutros países europeus. “Foi precisamente através desta singela interrogação que a política regressou à Europa”, responde.
A política é isso mesmo. A possibilidade de discutir alternativas de construção, mudar de paradigma, reorganizar a economia, promover a redistribuição do dinheiro, acabar com os fanatismos que nos fazem pensar que é uma fatalidade 1% da população mundial deter metade da riqueza mundial, quando 99% repartem migalhas que não chegam sequer a todas as mesas.
O novo governo de Alexis Tsipras tem uma difícil tarefa pela frente e, assim que tomou posse, não hesitou em enfrentá-la quando outros deixaram cair as promessas que os levaram ao poder. Qualquer que seja o resultado, uma coisa é certa. Nada volta a ser como dantes. A Grécia, berço da civilização ocidental, não nos deu apenas a democracia e a filosofia. Voltou a pôr a política no devido lugar e destruiu o fanatismo que mina as políticas económicas actuais, tal como a Igreja se redimiu por ter condenado, sem fundamento, quem defendeu uma verdade diferente.
É contra todo o tipo de fanatismos que as sociedades devem lutar, porque são eles que levam as pessoas a ultrapassar os limites e a cometer os crimes mais atrozes.
O holocausto foi obra de fanáticos. A questão que muitos colocam 70 anos depois da libertação do campo de concentração de Auschwitz, é: “Como foi possível?”. O escritor israelita Amos Oz, co-fundador do movimento pacifista Paz Agora, tem uma resposta simples para a questão: “A semente do fanatismo brota ao adoptar-se uma atitude de superioridade moral que impeça a obtenção de consensos”. Portanto, o perigo pode vir de onde menos se espera. O fanatismo “é mais contagioso do que qualquer vírus” e, por isso, Hitler contaminou um país inteiro. Com as suas doutrinas raciais, o nazismo só produziu morte e devastação. Deixou um legado que não pode ser esquecido. E um alerta: os fanatismos são a verdadeira raiz do mal.

*Publicada no dia 30 de Janeiro de 2015

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