segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O primeiro correspondente internacional em África




Um grupo de jornalistas polacos chega dia 9 de Dezembro a Luanda para dar início, no interior de Angola, à primeira etapa de uma viagem de homenagem a Kazimierz Nowak, um "bravo polaco" que, em 1931, se aventurou pelo continente africano na companhia da sua bicicleta.
Durante cinco anos, Nowak registou e relatou o quotidiano dos africanos nos despachos que enviou para a sua Polónia natal, como relata Mirolaslaw Wlekly, nesta reportagem publicada na última edição do Novo Jornal.
As fotografias que ilustram a peça são do arquivo pessoal da família de Kazimierz Nowak e mostram como o jornalista enfrentou os perigos que o desconhecido lhe foi colocando no caminho, quer a conviver com tribos canibais, quer a despistar animais selvagens ou a atravessar as areias do deserto do Sahara na companhia, apenas da sua bicicleta, duas máquinas fotográficas, uma "espingarda de cano duplo, uma centena de cartuchos, uma pistola automática, um cobertor, rede entomológica, uma tenda, postes, um machado, pneus de reserva, raios para as rodas, colas e adesivos, o gancho da agulha, linha, um quarto de quilo de quinino, aspirina e um pouco de óleo de ricino, duas mudas de roupa, e como stock total de alimentos por quilo de açúcar, 250 gramas de chá, um pouco de petróleo e um saco de farinha".

Cinco anos de bicicleta em África

O primeiro ciclista em Angola

“Uma negra de cem anos, com um apetite enorme, comia carne humana” – relatou do Congo Belga, na década de 30 do século passado, Kazimierz Nowak, um bravo polaco, que, como primeiro homem no mundo, viajou de bicicleta no continente africano. Passadas oito décadas, compatriotas seus “encontraram” a sua história e vão tentar repetir a viagem.

Miroslaw Wlekly*


Em Novembro de 1931 Kazimierz Nowak aparece com a sua bicicleta em Tripoli, uma cidade africana, e começa a grande viagem para o Cabo das Agulhas, do outro lado de África.
Indo de bicicleta descobre uma misteriosa terra, conhecida até agora só nos livros. Os índigenas, com interesse e, às vezes com pavor, observam este “branco selvagem”. Uma misteriosa pessoa com uma barba característica a chegar num desconhecido veículo de duas rodas.
O mundo acordou para esta pioneira aventura quando Ryszard Kapuscinski, um jornalista bem conhecido e já falecido, autor de um livro “Mais um dia de vida” sobre a guerra em Angola, revela uma placa dedicada a Nowak na estação de comboio em Poznan na Polónia. Antes, os fãs do viajante estavam à procura da família nos andarilhos, mas sem muito sucesso. Foi Kapuscinski que sugeriu submeter o assunto ao interesse dos outros.
“Certamente alguém vai aparecer” - disse.
O telefone tocou e, logo após, a TV contou a história. O traço levou a uma aldeia idílica no sudoeste da Polónia, em Sułów Wielki, onde durante muitos anos foram mantidas as memórias do ciclista corajoso.
Kazimierz Nowak nasceu em Stryj, agora na Ucrânia. Nos anos 20, trabalhou em Poznan, numa companhia de seguros. Quando a crise chegou à Polónia, decidiu tornar-se correspondente fotojornalista e viajar pelo mundo, garantindo, desta maneira, a sobrevivência da esposa e dos dois filhos.

De bicicleta

...Nowak passa pela Hungria, Áustria, Itália, Bélgica, Holanda, Roménia, Grécia. Escreve as reportagens e envia-as, com as fotos, para a Polónia. Finalmente chega a Tripoli, no norte da África, onde apanha uma doença e tem de regressar à Polónia. No entanto, promete que vai voltar.
“Meu tio falava nove línguas estrangeiras, trabalhou como jornalista, tornou-se interessado na vida africana” - conta Irena Golebiowska, cuja pai era o cunhado de Kazimierz Nowak. Na sua humilde casa na idílica aldeia de distância da estrada principal, mostra dezenas de fotos e as cartas com as memórias do tio Kazimierz.
“Eu era jovem demais para lembrar as histórias do tio. Mas conheço-as dos meus pais. As fotos com as descrições na parte traseira, mandava-as ao meu pai. Irena Golebiowska mostra as fotos que deixam um homem de boca aberta.
Numa das fotos vê-se uma mulher, de 100 anos, da tribo Bashilla. Está a comer com apetite carne humana.
Noutra foto, o polaco fica com os guerreiros da tribo Shilluk, que tinham a intenção de cozinhar uma sopa com Nowak.
Na terceira, está a passar de bicicleta pelo Sahara.
Na quarta, em baixo de árvore cujos frutos parecem "salame".
A próxima, está entre os Tutulayas, os deuses dos canibais.

África: inimigo ou um Deus

O viajante polaco parecia quase intocado e virgem. Onde apareceu, causou emoções extremas. Ou pensavam que era inimigo, ou o tratavam como Deus.
“Em certo momento, todo o povo veio e sentou-se o meu redor. Cada um dos adultos me cumprimentou com "Ikadyok" sacramental (Deus dá a você) ou "Ibi" (Chegaste!)” - escreveu numa das suas histórias.
“Nem sempre foi tão bom e fácil” - nota Irena Golebiowska. “Às vezes teve grandes dificuldades. Uma vez quase morreu. Felizmente, ele falou em língua de um povo onde chegou e assim salvou a sua vida. Em determinada situação matou uma cobra e, noutra, a dormir ouviu os leões a rugir”.
“A bicicleta, que parecia um camelo de duas corcovas, com a bagagem, foi riqueza, a minha casa e às vezes meu mundo inteiro” – escreveu noutra carta.
“Não era fácil para os pneus "Stomil", enviados do país, resistir ao peso. Duas câmaras, uma espingarda de cano duplo (calibre 12 mm) e uma centena de cartuchos, uma pistola automática, um cobertor, rede entomológica, uma tenda, postes, um machado, pneus de reserva, raios para as rodas colas e adesivos, o gancho da agulha, linha, um quarto de um quilo de quinino, aspirina e um pouco de óleo de rícino, duas mudas de roupa, e como stock total de alimentos por quilo de açúcar, 250 gramas de chá, um pouco de petróleo e um saco de farinha. No total, a bagagem pesava mais de 60 quilos e eu juro que era o mínimo para poder sobreviver para a viagem que eu esperava.
A Angola o fotojornalista chegou no dia 5 de Novembro 1934, três anos depois de sair da Polónia. Visitou Vila Pereira, no Sul do país. E na fazenda Boa Serra, perto do Huambo, encontrou a família polaca Zamoyski. Com eles passou o Natal. No Moxico, encontrou o rei Cangongo e viajou pelo rio Cassai. No dia 30 de Abril 1935 passou pela fronteira com o Congo Belga.

As histórias esquecidas

Ryszard Kapuscinski, o repórter mais famoso da Polónia, encontrou há alguns anos esta aventura africana de Kazimierz Nowak. Em sua opinião, as histórias de Nowak devem ocupar um lugar fixo entre os clássicos da reportagem polaca e europeia.
No seu caminho, Nowak encontrou Mambuti, anões locutores da floresta equatorial, que caçam elefantes, algumas mulheres com os picos da tribo Sara-Diendi com os círculos de ébano de 30 centímetros colocados nos lábios, foi-lhe ensinado também como preparar uma sopa temperada com carne de ratos...
Kazimierz viajava há já cinco anos. Depois de três anos, chegou à ponta sul da África.
Então, indo de bicicleta, a cavalo, de barco, depois a pé, numa canoa chamada de "Marys" (o nome da esposa), que foi destruída no rio Congo, e, finalmente, de camelo chegou a Argel em Novembro de 1936.
Fome, sede, calor, a estação das chuvas, as doenças, os perigos de animais e pessoas, nada impediu que Nowak pudesse terminar a sua viagem e deixar histórias de grande valor.
Não esperava, porém, que o perigo estivesse à sua espera na sua terra.
"Quando voltou, na Polónia começou o inverno. E assim, o homem, acostumado ao calor, ficou doente com pneumonia e, um ano após seu retorno, morreu esgotado pela doença”, diz um dos seus parentes.
“Deixou muitas fotos. A seguir foram enviadas pela tia Marys. Quando a guerra começou, a mãe guardou todas. Após a guerra, as fotos foram-nos devolvidas e guardadas em arquivo”.
As crianças foram proibidas de se aproximarem delas.

Repetir a aventura de Nowak

Há 10 anos, o jovem escritor Łukasz Wierzbicki, com base em informações da imprensa de Kazimier Nowak, escreveu um livro "No ciclismo e caminhada pela África".
Juntamente com os outros admiradores de Nowak, organizou no final do ano passado uma expedição com uma viagem que homenageou o andarilho valente.
Durante um ano, mudando os grupos de ciclistas, passaram pela África seguindo os passos de Nowak.
Desde Novembro de 2009, 11 equipas atravessaram a Líbia (onde encontraram um homem já idoso que se lembrava de Nowak), Egipto, Sudão, República Democrática do Congo, Uganda, Ruanda, Burundi, Zâmbia, Zimbabué e República da África do Sul. E já estão na Namíbia.
“Este projecto é uma homenagem a Kazimierz Nowak, que faleceu logo após o seu regresso à Polónia, e que durante muitos anos foi esquecido.
“Nesta viagem pretendemos mostrar aos africanos e ao Mundo esta personagem e a sua história que, ao contrário de outros viajantes europeus dessa altura, viajava sozinho, sem ajuda de carregadores, e com pouco dinheiro, podendo sobreviver graças ao povo africano”, diz Norbert Skrzynski, um líder da primeira etapa em Angola.
Em Dezembro está prevista a chegada da estafeta à fronteira de Angola, onde existirão duas etapas.
“Nowak chegou até ao Huambo de cavalo mas, devido às dificuldades logísticas e à escassez de recursos económicos, fizeram o percurso de bicicleta”, relata o líder da segunda etapa em Angola, Piotr Sudol.
A primeira etapa começa no dia 10 de Dezembro. Passa pelas cidades de Ondjiva, Mupa, Cuvelai, Cassinga, Kuvango, Galangue, Cuima, Caala e Huambo, tal como o percurso do histórico viajante.
“Se o tempo nos permitir, tentaremos chegar até à capital Luanda”, anunciam os ciclistas polacos.
E em Janeiro começa uma nova etapa, a partir de Luanda, passando pelo Huambo, Kuito, Luena até à fronteira com República Democrática do Congo, onde passarão as bicicletas à próxima equipa.
Agora irão de bicicletas. Mas, durante o próximo ano, a viagem será mais variada. De cavalo e camelos. Irão a pé. Farão canoagem em rios perigosos. Exactamente o que Kazimierz Nowak fez há 80 anos”.

*Jornalista polaco

Sem comentários:

Enviar um comentário