sábado, 11 de dezembro de 2010

A verdade (II) (crónica publicada no Novo Jornal)

Na década de 80 do século passado, a jornalista e escritora Meredith Maran foi incumbida de editar o livro de uma investigadora sobre crimes de incesto e abuso sexual infantil e nos anos seguintes escreveu compulsivamente sobre o assunto, em jornais e revistas.

Nos EUA eclodiam várias denúncias e o incesto que até aí estava coberto com o manto do segredo familiar, passou a ser uma obsessão, desde que “um punhado de académicas feministas tinha concluído que “não era a anomalia rara” e que “acontecia muitas vezes, em famílias normais”.
As investigadoras baseavam-se no pai da psicanálise para justificar porque as vítimas não denunciavam. “Tal como Freud tinha definido um século antes, o impacto do abuso sexual infantil em mentes jovens era tão profundo que as vítimas muitas vezes perdiam as suas memórias, durante muitos anos ou mesmo décadas”.
Estas constatações levaram muitas figuras públicas, como Roseanne Barr e Oprah Winfrey, a darem o seu testemunho. “Memórias de incestos entraram nas listas de livros mais vendidos”. «A Cor Púrpura», um romance acerca de incesto, que foi transposto para o cinema por Steven Spielberg com Oprah no papel de protagonista, recebeu o Prémio Pulitzer.
“Ao longo de todo esse tempo, crianças foram retiradas dos seus lares, e pais foram enviados para a prisão. Milhares de famílias foram desfeitas por acusações de abuso sexual, muitas vezes por filhas adultas que declaravam ter memórias reprimidas, e depois recuperadas”.
Apanhada no meio deste turbilhão, Meredith convenceu-se que ela própria era uma das vítimas que saíam do armário.
“Numa determinada noite, estava eu num grupo de terapia, a fazer pesquisa para um artigo, quando, após me sentar a ouvir um dos homens acusados a falar, ouvi uma voz dentro da minha cabeça. Era o meu pai. Eu tinha 15 anos e ele estava a gritar com o meu primeiro namorado, o Carl: "Ela é minha! Se não a deixares em paz, mato-te!".
De seu melhor amigo em pequena, Meredith deixou de se interessar pelo pai, na adolescência quando conheceu o primeiro namorado. E era à memória da relação conflituosa desse período que a jornalista fundamentou as suspeitas que agora se erguiam.
“Naquela noite, quando regressei a casa vinda da sessão do grupo de terapia, não conseguia parar de chorar. O meu marido, Robert, abraçou-me e, pela primeira vez em dez anos de casamento, o meu corpo involuntariamente encolheu-se e repeliu-o face ao seu toque. Deitei-me no sofá e chorei até adormecer”.
Meredith começou a ter sonhos acerca do incesto, consultou terapeutas, falou com o irmão e a mãe, mas a dúvida sobre as suas memórias não se desfez.
Cortou qualquer contacto com o pai, proibiu-o de ver os filhos, gesto seguido pelo irmão, e o amor de infância entre pai e filha tornou-se num pesadelo.
Na sua cabeça, girava a voz dos terapeutas: "Acredita em ti própria. Se pensas que sofreste abusos e a tua vida apresenta os sintomas, então foste mesmo molestada”.
A voz da mãe era a única que contrariava a realidade que se desenhava. No dia a seguir a partilhar a suspeita, a mãe liga-lhe e diz: “O teu pai tinha os seus defeitos, mas de forma alguma ele te poderia ter feito uma coisa dessas. Tu eras a coisa de que ele mais gostava no mundo”.
Meredith responde com um lacónico: "Lamento que isto esteja a ser tão difícil para si".
Por essa altura, chegavam aos tribunais dezenas de casos de abusos em rituais satânicos, ao mesmo tempo que a Fundação da Síndroma da Falsa Memória começa a desmontar a histeria colectiva que se criara.
“Terapeutas foram processados por implantarem falsas memórias, retiraram-lhes as licenças médicas e foram obrigados a pagar indemnizações. As condenações foram anuladas, os acusados foram libertados. Mais do que uma vez dei por mim a duvidar de mim própria. Teria eu criado as minhas memórias de incesto?”.
Apesar de tudo, ficou aliviada.
O pai de Meredith sofre um ataque cardíaco, que faz estremecer a filha. Mandou-lhe um postal. Ele respondeu que estava pronto para a ver. Nos anos que se seguiram não voltaram a falar no assunto, até que foi lhe diagnosticado Alzheimer. Meredith falou-lhe no assunto. O pai respondeu-lhe: "Quando aquilo aconteceu, pensei que em poucos dias haverias de cair em ti”.
Demorou anos, mas cabou por cair em si e em nome da verdade escreveu o livro «My Lie: A True Story of False Memory» (A minha mentira: A verdadeira história de uma falsa memória).
Um testemunho impressionante de como se constroem verdades sobre um turbilhão de mentiras.

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