sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A verdade (I) (crónica publicada no Novo Jornal)

O mundo está de pernas para o ar, desde que o site WikiLeaks divulgou mais de 250 mil documentos diplomáticos norte-americanos.

Coberta por um telhado de vidro, a diplomacia dos EUA estilhaçou e anda em bolandas para apanhar os cacos e diminuir os danos, não colaterais, mas desferidos directamente ao coração político da América.
O ministro dos Negócios Estrangeiros italiano foi o autor da frase mais significativa dos últimos dias. Com o recurso à metáfora, Franco Frattini afirmou no domingo que a “fuga” representa o “11 de Setembro da diplomacia”. O momento a partir do qual nada será como dantes.
A verdade é a maior ameaça aos governos, sobretudo os que actuam à margem das regras. Os outros não têm por que ter receios. Richard Nixon sentio-o na pele. O escândalo Watergate valeu-lhe a Presidência e a carreira política e Barack Obama vai ficar com o anátema dos “furos” na rede diplomática dos EUA, embora a responsabilidade não seja directamente sua.
As críticas por as secretas não terem antecipado o 11 de Setembro, levou o Departamento de Estado, durante a administração de Gorge W. Bush, a criar o «netcentric diplomacy», um sistema de partilha de informação acessível a mais de dois milhões de pessoas e que, veio a revelar-se, não é uma irresponsabilidade. É uma infantilidade na era do digital.
O papel que antes cabia aos jornalistas é hoje desempenhado por um site criado pelo homem mais perseguido da actualidade, retirando o protagonismo a Osama Bin Laden, o chefe intelectual e moral da Al-Qaida, que se viu relegado para um papel inferior no “Wanted – dead ou alive” ao velho estilo do Texas.
A diabolização de Assange, que tem sobre si mandatos de captura da Interpol e da Suécia, já começou. Para além da acusação de “violação e agressão sexual” a uma ex-colaboradora, o Procurador-Geral dos EUA e o Departamento de Defesa estão a trabalhar em conjunto numa investigação criminal sobre a divulgação de documentos classificados.
As informações reveladas pela wikiLeaks interpelam sobre os jogos diplomáticos e políticos e fazem-nos reflectir sobre o jornalismo da actualidade: o de investigação que se perdeu nas esquinas dos interesses - os políticos e comerciais; o embedded (conceito criado pelos norte-americanos na Guerra do Iraque e que ao introduzir os jornalistas entre os militares visava controlar os seus passos) que coloca os profissionais da informação no lugar errado.
No jornalismo que se faz hoje há pouco espaço para o jornalismo. Ele deu lugar a substantivos como conformismo, direccionismo, partidarismo, comodismo, permitindo ainda alguns neologismos como economismo e lucrismo.
Não questiono o conteúdo e o tom usado pelos diplomatas. Eles existem para dar a sua visão parcial dos países onde estão. O que não me parece razoável é a forma como essa informação é partilhada e o nível de controlo que os EUA exercem sobre os seus parceiros.
Não é aceitável que se coloque o secretário-Geral da ONU sobre vigilância, como indica uma ordem da secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton. A ONU não é uma organização subordinada aos EUA e agir desta forma é pretender que o seja. Esta, sim, é a grande revelação dos 250 mil telegramas divulgados, a par da forma como EUA e alguns países árabes jogam no conflito do Médio Oriente.
Estou particularmente expectante quanto às revelações que Assange promete sobre “algumas violações flagrantes” e “práticas anti-éticas” de um grande banco dos EUA.
Não se conhece ainda na plenitude, embora os sinais emitidos após a crise financeira dêem uma ideia, a forma como os bancos actuam a nível executivo, para “cumprirem os seus próprios interesses” e que, segundo Assange, vai levar a “investigações”. Mais importante ainda, vai conduzir a “reformas” para que o mundo deixe de ficar refém do sistema bancário. Se os cidadãos responderem ao apelo do ex-futebolista Eric Cantona e levantarem o seu dinheiro no dia 7 de Dezembro o sistema financeiro paralisa e tem uma primeira lição.
“O 28 de Novembro de 2010 ficará como o dia em que tudo ou quase tudo se deslocou, desenrolou e se espalhou na Internet. (...) É o dia em que, pela primeira vez, os cidadãos têm a possibilidade de dissecar numerosos factos recentes e desmascarar as mentiras dos seus respectivos “poderosos””.
A frase não é minha. É do director da edição online do «La Repubblica», Massimo Razzi. E revela que a verdade faz mais danos do que a ameaça das armas nucleares.

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