sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Pontas soltas (crónica publicada no Novo Jornal)

O povo votou e decidiu a libertação do sul do até agora maior país africano. Mas o referendo sobre a independência do sul do Sudão, realizado a 9 e 15 de Janeiro, está envolto num emaranhado de pontas soltas que podem ensombrar a conquista da liberdade prometida para 9 de Julho, data de criação da nova nação africana.

A situação no Darfur, o principal foco de instabilidade na região, mantém-se; o referendo para definir o estatuto na região de Abyei, que faz fronteira entre o sul e o norte, foi adiado; e a escolha da capital do novo país é uma questão em aberto que faz suspeitar estar-se perante uma manta de retalhos, cosida pela comunicação internacional com a linha dada pelo ditador que governa o país, e que pode ceder nos pontos mais fracos.
A posição do governo do Sudão é curiosa e mostra bem a forma como o regime liderado por Omar Al-Bashir olha para um conflito que se arrasta há duas décadas, não por motivações religiosas, mas económicas: as enormes reservas de petróleo na faixa central.
Mal foi conhecida a decisão dos sudaneses do Sul, que votaram massivamente pela secessão, com 98,83% dos votos expressos, o ministro dos Negócios Estrangeiros encarregou o seu embaixador nas Nações Unidas, Ali Karti, de apresentar o pedido de recompensa pelo gesto de boa vontade do seu governo, traduzido na aceitação dos resultados do referendo.
Ou seja, ainda a nova Nação não está formalmente criada e já o regime de Al-Bashir quer uma recompensa: levantamento das sanções internacionais ao Sudão e ao seu Presidente e o perdão da dívida.
Isto sem que o regime de Cartum se preocupe, ou manifeste efectivamente que se preocupa, em criar condições para a conclusão do processo de paz.
As questões em aberto são determinantes para um bom desfecho do referendo. A definição do estatuto para a região de Abyei é crucial, como sublinhou o representante de Portugal na ONU, Moraes Cabral, no Conselho de Segurança, porque a sua ausência “apenas tenderá a alimentar as tensões na região”.
A cessação da violência no Darfur, onde desde 2003 está em marcha um genocídio, condição essencial para que a segurança seja extensiva a todos os sudaneses, pressupõe um compromisso de todas as partes e uma vigilância atenta da comunidade internacional.
E, finalmente, a questão, aparentemente secundária, da escolha da capital – será Juba ou não? - e que é uma das principais preocupações do novo governo, como evidenciou Victor Ângelo, ex-representante especial do secretário geral da ONU para a República Centro Africana e para o Chade, dois vizinhos do Sudão, e que sentem trepidação sempre que há abalos no ainda maior país africano.
Segundo o diplomata, “há um conflito muito grande com as tribos ancestrais de Juba que não querem outras tribos naquela zona ou não querem que a cidade se expanda”, pelo que a criação da capital ali “tem à partida potencial para gerar mais conflitos étnicos”.
Além disso o Sudão do Sul presidido por Salva Kiir, o actual vice-presidente do Sudão, tem de resolver nos próximos cinco meses os termos “da separação” do norte.
As interligações económicas e militares entre os dois países não são de fácil digestão e podem ser tão confrangedoras como o potencial de conflito que existe na fronteira entre o norte e o sul, enquanto não se definir o estatuto de Abyei.
$O norte, predominantemente árabe, e o sul, região miscigenada entre cristãos, em maioria, e animistas, assinaram em Janeiro de 2005 o Tratado de Naivasha, um acordo de paz que previa o referendo no sul e outro em Abyei.
Pretender arrumar a casa sem chegar a todos os recantos não é possível. Há a ensombrar a paz os fantasmas de dois milhões de mortos e seis milhões de refugiados, na guerra pelo controlo da maior riqueza natural do país, a reserva de milhões de barris de petróleo, na faixa central do Sudão.
A população do sul deu uma lição nos dois dias de referendo. Votou com a convicção de que estava a decidir o seu desígnio, como sublinhou a chefe da missão de observadores da União Europeia, a eurodeputada belga Veronique de Keyser: “Estive noutras missões e em algumas delas vemos que o povo vota porque tem de votar, mas que não acredita que vai mudar nada. No sul do Sudão, as pessoas estão contentes, é palpável, têm o sentimento que este referendo pode mudar a sua vida”.
Cabe agora aos políticos mostrar que os 3,9 milhões de sudaneses que votaram tinham razão. E que é possível mudar.

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