“As palavras constituem o nervo e o músculo que mantém as sociedades de pé”, argumentou. Veja o Alcorão, a Bíblia, a Constituição Americana, mas também as cartas escritas de pais e filhos, os testamentos, as bênçãos, as maldições. Milhares de palavras, imbuídas do espectro completo de emoções, enchem todos os recantos e esconsos da vida humana. “Algumas dessas palavras só podem ser vistas aqui, em Tombuctu”, afirmou, triunfante”.
Abdel Haidara é um “homem obcecado pela palavra escrita”. Um dos muitos guardiões de manuscritos do Tombuctu, cidade no interior do Mali, que conserva no seu seio milénios de conhecimento.
Numa altura em que os noticiários do mundo inteiro abrem com notícias das revoltas populares e convulsões em África pelo derrube do poder despótico, é bom saber que África é mais do que pobreza e luta. Mesmo que neste pedaço de África as caravanas de comerciantes que levaram os tuaregues a criar a cidade no século XI, numa encruzilhada no interior do Mali, já não passem com tanta frequência. E Tombuctu, classificada pela UNESCO como património da Humanidade, vá cedendo à destruição das areias e os turistas tenham escolhido outras rotas por causa das ameaças que ”provêm de um conjunto de células terroristas, grupos rebeldes e quadrilhas de contrabandistas” que exploram o deserto setentrional.
Uma excelente reportagem da National Geographic percorre os caminhos que caravanas de comerciantes fizeram, desde o século VII, e que transformaram Tombuctu num centro de tolerância religiosa. Nela se cruzaram muçulmanos, cristãos e judeus e, todos eles, semearam o saber, que germinou em milhares de manuscritos religiosamente guardados, alguns até hoje.
Graças à sua “posição na encruzilhada de duas artérias importantíssimas: as rotas caravaneiras do Sahara e o rio Niger”, Tombuctu foi crescendo em riqueza – por ali circularam panos, especiarias e sal que foram trocadas por ouro, marfim e escravos – e em saber.
Na cidade foram erguidas mesquitas grandiosas, que atraíram estudiosos que, por sua vez, formaram academias e importaram livros de todas as partes, transformando-se no século XV num centro de estudos islâmicos. “Quando chegavam novos livros, exércitos de escribas copiavam-nos para as bibliotecas particulares dos professores locais e dos seus ricos clientes. “Os livros deram origem a novos livros”, disse Abdel, gesticulando com a mão”, lê-se na reportagem da National Geographic.
Quando os marroquinos ali chegaram em 1591, o seu exército saqueou as bibliotecas, reuniu os melhores estudiosos e enviou-os ao Sultão de Marrocos, desencadeando a dispersão das bibliotecas de Tombuctu. As colecções que restaram foram divididas pelas famílias que as possuíam e que se tornaram guardiões dos manuscritos. “Algumas foram encerradas nas paredes de adobe das casas, outras enterradas no deserto, muitas destruídas durante a viagem”.
Na actualidade, faz-se um esforço por recuperar este valioso património. Donativos de governos e instituições privadas de todo o mundo, como a Fundação Ford, permitiram construir três modernas bibliotecas, onde estão a ser recolhidos, restaurados e digitalizados os manuscritos de Tombuctu, entre os quais consta a primeira “prova documental da democracia praticada em África, uma carta de um emissário endereçada ao xeque de Masina”.
Indiferentes às notícias de raptos de cidadãos estrangeiros que se escondem no deserto do Norte do Mali ou às revoltas que incendeiam a região vizinha do Magreb, os habitantes de Tombuctu travam uma luta contra o tempo para salvar o seu bem mais precioso.
“Os criminosos, ou seja lá quem for, são a menor das minhas preocupações. As térmitas são o meu pior inimigo. Nos meus piores pesadelos, vejo um texto raro que nunca li a ser lentamente devorado”, respondeu Abdel Haidara ao repórter da National Geographic, Peter Gwin.
A revista refere que “muitos milhares de manuscritos jazem enterrados no deserto, ou esquecidos em esconderijos, sucumbindo lentamente ao calor, ao apodrecimento e aos insectos”.
E o que se poderá perder entre este património é o que verdadeiramente atormenta Abdel Haidara, cuja “família controla a maior biblioteca privada de Tombuctu, com cerca de 22 mil manuscritos (datados desde o século XI) e códices de todos os aspectos, alguns dos quais luxuosamente iluminados a ouro e com as margens coloridamente decoradas”.
“Os livros eram antigamente mais cobiçados do que o ouro ou os escravos em Tombuctu”, afirmou um mercador de sal com quem a National Geographic falou.
É hora de recuperar o seu valor. Não só em Tombuctu!
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