segunda-feira, 23 de maio de 2011

Lição de desenho, de Nizar Qabbani


Foto: Exame, Brasil

O Presidente dos EUA fez, na quinta-feira, 19, um discurso sobre as revoltas no mundo árabe e no norte de África. Apesar de Barack Obama ter introduzido profundidade no discurso político, continuo a preferir a voz dos poetas. Neste caso, a do poeta e diplomata sírio, Nizar Qabbani (1923-1998)


UMA LIÇÃO DE DESENHO

O meu filho coloca a sua caixa de pintura à minha frente
E pede-me que lhe desenhe um pássaro.
Mergulho o pincel na cor cinzenta
E traço um quadrado com fechaduras e grades.
Os seus olhos enchem-se de surpresa:

"... Mas isto é uma prisão, pai,
Não sabes desenhar um pássaro?

E eu digo-lhe: "Filho, perdoa-me.
Esqueci-me da forma dos pássaros.

O meu filho coloca o livro de desenhos à minha frente
E pede-me que desenhe uma espiga de trigo.

Pego num lápis
E desenho uma arma.

O meu filho desdenha da minha ignorância,
perguntando,
"Pai, não sabes a diferença entre uma espiga de trigo e uma arma?"
Eu digo-lhe: "Filho,
uma vez usei a forma da espiga de trigo
a forma do pão
a forma da rosa
Mas nestes tempos duros
as árvores da floresta juntaram-se
aos homens da milícia
e a rosa veste uniformes escuros

Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher  uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos."

O meu filho senta-se à beira da minha cama
e pede-me que recite um poema
Uma lágrima cai dos meus olhos para a almofada.

O meu filho apanha-a, surpreendido, dizendo:

"Mas esta é uma lágrima, pai não é um poema!"

E eu digo-lhe:

"Quando cresceres, meu filho,
e aprenderes o 'diwan' da poesia árabe
descobrirás que palavra e lágrima são gémeas
e que o poema árabe
não é mais do que uma lágrima chorada por dedos que escrevem."

O meu filho pega nos seus pincéis,
a caixa de pinturas à minha frente
e pede-me que lhe desenhe uma pátria.

O pincel treme nas minhas mãos
e eu afundo-me, chorando.

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