domingo, 15 de maio de 2011

Negócios dos bebés (crónica publicada no Novo Jornal)

“O funcionário do planeamento familiar rondava regularmente por aquela aldeia situada no cimo da montanha, à procura de fraldas em estendais de roupa a secar e à escuta de choros de bebés recém-nascidos e com fome. Num dia de Primavera de 2004, apresentou-se à porta da casa de Yang Shuiying e ordenou: Entreguem o bebé!

Yang chorou e discutiu e argumentou, mas, sozinha com a sua filha de quatro meses de idade, não estava em posição de resistir ao homem que todos os pais de Tianxi temiam.
"Vou vender a bebé para adopção no estrangeiro. Posso conseguir bom dinheiro por ela", disse ele à chorosa mãe antes de se meter no seu automóvel com a criança e se dirigir com ela para um orfanato em Zhenyuan, uma cidade vizinha na província de Guizhou, no Sul da China. Em troca, prometeu que a família não teria que pagar multas por ter violado a política chinesa de se poder ter apenas um filho”.
Dois anos depois desta reportagem do «Los Angeles Times», a imprensa chinesa revela a existência de “crianças fora da quota permitida pela política de controlo da natalidade” que “foram retiradas às famílias para adopção como sendo órfãos, por três mil dólares”.
A revista oficial chinesa «Caixin» fala da existência de “20 crianças”. A ponta do icebergue, tendo em conta a investigação desenvolvida pelo jornal norte-americano.
A «Caixin» circunscreve este “caso de tráfico de crianças” a “uma aldeia rural pobre chamada Longhui, na província de Hunan, no centro da China”, num negócio “conduzido por funcionários da comissão local do Planeamento Familiar”. O «Los Angeles Times», escreve que “mais de 80 mil crianças chinesas foram adoptadas no estrangeiro, a maioria das quais por famílias dos Estados Unidos”, desde o “início dos anos 80”.
Yang Shuiying foi uma das vítimas deste tráfico perverso. Naquela primavera de 2004, o funcionário do planeamento familiar levou-lhe a filha e deixou um aviso: “Não diga nada a ninguém acerca disto”. Ao longo de cinco anos, a mãe guardou aquele “terrível” segredo. “Eu não percebi que eles não tinham o direito de levar os nossos bebés”, disse à jornalista Barbara Demick.
“A ideia que se tinha era que os bebés, na sua maioria meninas, eram abandonados pelos seus pais devido à tradicional preferência por filhos do sexo masculino e às restrições ao tamanho das famílias na China”, escreve a repórter do «Los Angeles Times». Afinal não. O novelo começou a desfiar-se quando os pais começaram a denunciar este negócio, que alimentava funcionários do Estado chinês e malfeitores de várias proveniências, dentro e fora do país.
As dúvidas sobre a forma como eram obtidos os bebés para adopção passaram fronteiras. “No início, acho eu, a adopção na China era algo muito positivo, porque havia tantas meninas abandonadas. Mas depois tornou-se um mercado orientado pela procura e oferta, e muitas pessoas a nível local estavam a fazer muito dinheiro com o processo", declarou Ina Hut, que em 2009 se demitiu do posto de directora da maior agência holandesa de adopção, devido a preocupações sobre o tráfico de bebés.
As suspeitas alastraram como rastilho entre a comunidade internacional de adopções, enquanto o Centro para os Assuntos de Adopção na China, a agência governamental que supervisiona as adopções a nível interno e internacional, se ocultava na recusa em responder aos repetidos pedidos para comentar as desconfianças. Funcionários da agência limitavam-se a dizer a diplomatas estrangeiros que acreditavam que os abusos se limitavam a um pequeno número de bebés e que os responsáveis tinham sido demitidos e castigados.
Dois anos depois surge um tímido reconhecimento oficial deste caso de tráfico . Tão tímido que se limita a “20 crianças” nascidas numa aldeia rural pobre da província de Hunan, no centro de China. Uma borracha é passada sobre o caso da província de Guizhou, no sudoeste da China, também relatado pelo jornal «Global Times», onde o orfanato “comprava” as crianças por 450 dólares e as “dava” para adopção a estrangeiros por três mil dólares.
A China anunciou em Março que está a pensar rever a sua drástica política de controlo da natalidade, autorizando os casais a ter dois filhos, mais um do que é hoje permitido. Para trás ficam as consequências de uma política, que produziu resultados no controlo da natalidade, mas mutilou milhares de famílias, condenou milhões de mulheres ao ostracismo e terá impacto no futuro por um, já evidente, desequilíbrio entre o número de homens e mulheres naquele país asiático

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