sexta-feira, 3 de junho de 2011

Até que germine (crónica publicada no Novo Jornal)

“- A democracia exige uma longa aprendizagem – diz Ali. – Ela se imporá por si mesma quando estiver madura. O trabalho político consiste num militantismo de largo fôlego para fazer germinar a democracia no seio do povo e calar as discussões estéreis e as batalhas dos chefes nos estados-maiores dos partidos políticos.
- Estarás de acordo comigo em que, para assegurar essa tarefa de aprendizagem e de vulgarização da democracia, é necessário utilizar o poder do Estado em todos os sectores: a escola, a justiça, a informação, a cultura. É vital que o poder venha a pertencer a um grupo que queira realmente instaurar a democracia”.
Aproxima-se o fim da era de Berlusconi na Itália. Do homem que, no coração da Europa, provou que, mesmo em democracia, é possível governar com autoritarismo ditatorial. Do homem que utilizou todo o poder do Estado, não para instaurar a democracia - como advogam estas duas personagens (reais) do romance «Sem Voz», da argelina Hafsa Zinai-Koudil - mas para se manter na liderança do país, corroendo os fundamentos da democracia. Daquele que com o controlo dos meios de comunicação social públicos e privados – os três canais privados pertencem-lhe e os três públicos são controlados por ele – moldou os cidadãos à medida dos seus interesses; que criou alianças com a igreja, prometendo políticas convenientes à segunda, numa relação que serviu sobretudo o primeiro; e que promoveu a reforma da justiça para se tornar impune e perpetuar a sua soberania.
Em vão.
O poder de Silvio Berlusconi está perto do termo e com ele o fim do berlusconismo, pedido hoje por aqueles que foram seus aliados no governo.
Na segunda-feira, o primeiro-ministro italiano perdeu as eleições municipais, com um resultado que põe fim a 16 anos de hegemonia e que deixa muito pouca margem de manobra para se manter no poder até ao fim do mandato.
Aos eleitores de Milão, o seu feudo tradicional, Berlusconi respondeu com um lacónico: “Vão-se arrepender”. Só não explicou como. A ameaça não deverá ter grande efeito. Os italianos parecem ter quebrado o feitiço. E Berlusconi não tem o aparelho repressor que ajuda muitos ditadores a perpetuarem-se no poder.
Hamza, de 13 anos, foi torturado e morto pelas forças militares que tentam a todo o custo reprimir os protestos na Síria e impedir a queda de Bashir al-Assad.
Milhares de sírios respondem à vaga de repressão indo para a rua manifestar-se. Na sexta-feira, 29 de Abril, Hamza al-Khateeb acompanhou os familiares e amigos que se associaram às manifestações desse dia, em Daraa, um dos principais palcos da contestação ao regime. As autoridades atacaram a multidão, dispararam a matar e, no meio da confusão, centenas de pessoas desapareceram. A família perdeu o rasto à criança.
Uma semana depois, representantes do governo apareceram em casa de Hamza. Pediram aos pais que assinassem um documento, em que concordavam receber o corpo do filho com a condição de não o mostrarem e de não discutirem as circunstâncias da sua morte. A família concordou, mas, perante o estado do cadáver, resolveu chamar um activista que o filmou e o colocou no Youtube.
O corpo era um espelho da tortura atroz e gratuita. O rosto estava desfigurado; o peito crivado de balas e de queimaduras de cigarros; o pescoço fora partido; o maxilar desfeito e o pénis cortado.
As imagens de Hamza morto correram mundo. A violência extrema exercida sobre o rapaz é tão impressionante que levou o Youtube a retirar o vídeo.
A criança depressa se transformou no rosto da revolução síria. Todos os países que desabrocharam na Primavera Árabe têm tido o seu mártir, mas nenhum como este: tão novo, tão injustamente martirizado. A sua imagem está a insuflar ânimo nos revoltosos e a fazer com que, cada vez, mais pessoas saíam para a rua.
O Departamento de Estado norte-americano manifestou-se “horrorizado” com o relato do que aconteceu a Hamza. O Governo francês considerou que o rapaz "se tornou num símbolo" dos manifestantes torturados. A ONU disse ter em sua posse informações da morte de 30 crianças. E Damasco anunciou a abertura de um inquérito, depois de a UNICEF o ter pedido.
Em vão.
O regime sírio quis, com a exibição do corpo do rapaz, dar uma lição aos revoltosos, mostrando-lhes do que é capaz. Acabou por dar a semente que faz “germinar a democracia no seio do povo” e a prova cabal da sua acção criminosa.

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