sábado, 2 de julho de 2011

Sem redenção (crónica publicada no Novo Jornal)

Amir é um rapaz de 12 anos que tenta desesperadamente agradar ao pai, um afegão que ficou viúvo cedo e que vive ocupado a ser um homem de negócios bem sucedido.
A família vive num bairro abastado de Cabul, na década de 1970, durante os últimos anos do reinado do Rei Zahir.
 

A mãe de Amir morreu quando deu à luz o filho e o rapaz cresceu numa cultura cheia de desvios culpabilizantes, tendo-se convencido da sua própria culpa na morte da mãe.
Amir passou a infância com o seu leal amigo Hassan que o ajudou a vencer um torneio de lançamento de papagaios, com o qual Amir pensava conquistar a aprovação e admiração do pai. No meio da disputa, o «Menino de Cabul» traiu o companheiro de brincadeiras que, afinal de contas, era um servo e como servo tinha de ser tratado, descobrindo mais tarde que era seu meio-irmão.
Depois da invasão russa, em 1979, a família de Amir foge para os Estados Unidos. O rapaz cresce no país estranho que lhe dá acolhimento, mas apercebe-se que terá de voltar um dia para conquistar aquilo que a sua vida não lhe deu: a redenção.
O governador do banco central do Afeganistão, Abdul Qadir Fitrat, fugiu para os Estados Unidos. Já em Washington, Abdul alegou temer pela sua vida, na sequência de acusações de corrupção e do quase colapso do primeiro banco privado do país, o Kabul Bank.
A primeira história, do escritor Khaled Hosseini, comoveu o mundo por retratar muito do sofrimento de um povo que vive em guerra, há décadas, transformando «O Menino de Cabul» no livro afegão mais lido de sempre. Lançado em 2003, o romance foi adaptado ao cinema em 2007.
A segunda história ainda não passou para o cinema, mas já faz correr muita tinta. Ao contrário da primeira, não se trata de ficção, mas da realidade pura e dura. Uma realidade que mistura dinheiro com guerra, droga e corrupção; poder, roubo e maldição; mas onde não se vislumbram culpados, numa aparente impunidade que vigora há anos no país que se transformou numa cleptocracia e num narcoestado.
Em Abril deste ano, meses antes de fugir para os EUA, Abdul teve a coragem de ir contra o status quo vigente e divulgou o nome de personalidades afegãs implicadas, segundo ele, no escândalo do Kabul Bank, o primeiro banco privado do país, fundado em 2004 por Sherkhan Farnood, jogador de póquer internacional.
Entre os proprietários do banco encontra-se também o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, que conseguiu ser reeleito recentemente com a ajuda dos Estados Unidos, apesar das acusações de aproveitamento do cargo para enriquecimento próprio, e um irmão do vice-presidente, Mohammad Qasim Fahim.
O Kabul Bank está sob o controlo do banco central do Afeganistão desde finais de 2010, depois de um desvio de fundos ter levado a instituição à beira da falência.
O buraco irritou o Fundo Monetário Internacional (FMI) que fez depender a atribuição de um programa de ajuda financeira ao Afeganistão de um acordo com Cabul para a resolução da crise, recomendando a venda ou liquidação do Kabul Bank.
O escândalo no primeiro banco privado afegão não é uma novidade no mundo financeiro e também não surpreende num país, onde a corrupção é endémica e toda a economia vive à sombra do ópio. O que causa espanto é a forma como o esquema em pirâmide no Kabul Bank - o mesmo com o qual Bernard Madoff levou milhares de investidores em todo o mundo à ruína – se desenvolveu nas barbas dos auditores internacionais.
Os accionistas do banco investiram, que é como quem diz desviaram, milhões em moradias de luxo numa ilha artificial no Dubai, em aviões decrépitos e outros luxos; ofereceram dinheiro a políticos (a campanha para a reeleição do Presidente Karzai contou com 4 milhões do Kabul Bank), num total de mil milhões de dólares “sacados”.
As autoridades afegãs apenas conseguiram reaver 61 milhões e os responsáveis pelo banco continuam a gozar de uma dolosa impunidade. Khalilullah Ferozi, que foi afastado da liderança do banco encontrando-se supostamente em prisão domiciliária, falou há uma semana para o jornal britânico The Guardian num dos mais caros hotéis de luxo de Cabul.
As irregularidades do banco, que sofreu o maior desfalque da história, tendo em conta a dimensão económica do país, eram tantas e tão graves que fazem corar de vergonha os auditores internacionais que se deixaram levar por uma contabilidade paralela, digna de ficção.
Aliás, esta é a única nota de ficção numa história que, como «O Menino de Cabul», também promete muita emoção. Mas onde, ao contrário da primeira, não se antevêm sentimentos de culpa nem qualquer tipo de redenção.

Sem comentários:

Enviar um comentário