- O seu instinto está certo – disse o homem de forma simpática -, mas escolhi-o a si para conversar.
Fadil ficou a olhar para ele com a cautela que tinha adquirido à força de ser perseguido pelos espias.
- Quem é o senhor? – perguntou.
- Isso não interessa. O importante é que sou um homem do destino e tenho uma oferta para si.
Fadil, ainda mais cauteloso, perguntou:
- Quem o enviou? Fale claramente, pois não gosto de adivinhas.
- Eu também não. Aqui tem o presente que torna desnecessário tudo o resto.
Tirou do bolso da sua túnica um gorro magnificamente decorado com ornamentos coloridos, como Fadil nunca vira. Pôs-lho na cabeça e num abrir e fechar de olhos tornou-se invisível. Fadil ficou espantado e olhou em volta de forma ansiosa.
- É um sonho? – perguntou ele.
Ouviu a voz do homem perguntar com uma gargalhada:
- Não ouviu falar do gorro da invisibilidade? É o que isto é.
(…) - Quem é o senhor? – perguntou nervosamente.
- A oferta é real e tangível e qualquer pergunta para além disso não é importante.
- Tenciona mesmo dar-mo?
- Foi por isso que o escolhi a si.
(…) Fadil pensou que o mundo tinha sido criado de novo e que tinha de empregar esta oferta para salvar a humanidade. Imediatamente o seu coração se encheu de nobres aspirações.
- Em que pensa? – perguntou-lhe o homem.
- Em coisas belas que o alegrarão.
- Diga-me o que vai fazer com ele – perguntou o outro com cautela.
- Farei o que me ditar a consciência – respondeu Fadil com a cara radiante.
- Pode fazer tudo quanto quiser excepto o que lhe ditar a consciência.
O olhar de Fadil arrefeceu e invadiu-o uma sensação de fracasso e desgosto.
- O que quer dizer?
- Que pode fazer tudo quanto quiser excepto o que lhe ditar a consciência. É essa condição. (…)
- Então está a empurrar-me para o mal!
- A minha condição é clara. Não faça o que lhe ditar a consciência, mas também não cometa más acções.
- Então que vou eu fazer?
- Há muitas coisas que não são nem boas nem más. É livre.
- Vivi de forma honrada.
- Continue a viver como quiser, mas com o turbante, não com o gorro. Afinal, o que obteve até agora? Pobreza e de vez em quando prisão.
- Isso é problema meu.
- Chegou o momento de me ir embora. O que responde? – disse o homem elevando os pés.
(…) - É uma oferta aceitável. Nada tenho a temer.”
A aventura que o escritor egípcio Naguib Mahfuz relata no livro «As noites das mil e uma noites» transformou a vida de Nagib, mas também o seu coração. Sentindo-se como a “brisa que está presente em todo o lado, mas não se vê”, o homem que até aí tinha levado uma vida honesta e de trabalho, deixou-se apoderar pela “mágica experiência” e usou o poder da invisibilidade, primeiro, para fazer partidas inocentes e, depois, para os crimes mais atrozes. Deixou de trabalhar, passou a roubar e a matar, atirando, com a sua invisibilidade, as culpas para terceiros.
Neste romance do autor egípcio, premiado com o Nobel da Literatura em 1988, desfilam as tensões da natureza humana, num duelo permanente entre o bem e o mal, cuja fronteira se esbate quando o poder se apodera das criaturas: O chefe da polícia que, impotente para travar a onda de criminalidade, acaba por assassinar o governador, o maior dos ladrões; o sultão que, depois de espalhar a morte pelos inimigos e todos os que afrontam a sua vontade, inicia uma errância pelo apaziguamento da sua alma; e o sapateiro Maruf nomeado governador pelo sultão por enveredar pelo caminho do bem, depois de se apossar dos poderes do anel de Salomão.
Abro os jornais e por eles desfilam personagens maléficas. Um magistrado que vai investigar o primeiro-ministro Kosovar por ter liderado uma rede de tráfico de órgãos humanos de prisioneiros civis durante a guerra da independência, quando comandava o exército de libertação do Kosovo; o presidente de um país, Afeganistão, que governa num regime de cleptocracia tal que até o ministro de um país aliado, Grâ-Bretanha, anseia pelo fim do seu mandato, em 2014; cientistas norte-americanos que inocularam doenças sexualmente transmissíveis, sífilis e gonorreia, em mais de mil pessoas na Guatelama, em ensaios clínicos que terão matado 83…
Também na vida real há essa permanente tensão entre o bem e o mal, mas aqui raramente o bem vence, como acontece com o mundo criado pelo “escritor da alma partida do Egipto”.
E é pena.
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