Outro contemporâneo de Montesquieu, o escritor e político irlandês Edmund Burke, introduziu uma nuance nesta verdade universal - “Quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso” – dizendo com outras palavras aquilo que o filósofo barão resumiu na frase: “É uma experiência eterna que todos os homens com poder são tentados a abusar”.
São milhentas as frases na literatura universal que traduzem um fenómeno que, com séculos de exemplos, tem estatuto científico. Mesmo assim, há quem insista em iludir o óbvio e tente, por todos os meios, exercer o poder de forma contínua sem qualquer espécie de freios.
Este arrazoado vem a propósito de dois acontecimentos que ocorrem na Europa e que ameaçam os princípios da democracia e do Estado de direito.
Um deles tem lugar na Hungria, onde um movimento popular tenta chamar a atenção para as alterações à Constituição aprovadas pelo actual primeiro-ministro, Viktor Orbán, e que já suscitaram reacções da União Europeia e dos EUA.
Dois dias antes do Natal, o ex-primeiro-ministro húngaro e líder da oposição, o socialista Ferene Gyurcsany, foi detido, juntamente com 25 deputados, durante um protesto no exterior do parlamento, após a aprovação de um pacote de leis consideradas anti-democráticas.
Com o país enterrado numa grave crise, o partido de direita no poder, o Fidesz (que detém uma maioria de dois terços no parlamento) aprovou uma lei de estabilidade financeira que suscitou várias objecções da UE e que poderá colocar em risco um novo acordo de financiamento junto dos credores internacionais.
O governo aprovou ainda uma lei eleitoral que, segundo a oposição, favorece o partido no poder, o que levou os deputados da oposição a acorrentarem-se no exterior do parlamento.
O protesto aumentou de intensidade e alargou-se à sociedade civil quando, a 2 de Dezembro, uma manifestação frente à Opera, onde o governo comemorava a nova Constituição, despertou a comunidade internacional.
Desde que assumiu o poder em 2010, o governo de Orban, apelidado de «Viktator» por causa do seu autoritarismo, reduziu os poderes do tribunal constitucional, renacionalizou os fundos de pensões privados, acabou com a entidade independente que supervisiona o orçamento e limitou a actividade dos media.
Em Espanha começou a ser julgado Baltazar Garzón, que ficou conhecido como o juiz sem medo, desde que, em 1998, tentou extraditar Augusto Pinochet para o sentar no banco dos réus, criando jurisprudência no princípio de que crimes contra a Humanidade podem ser investigados em qualquer lugar, independentemente de onde foram cometidos.
Garzón está a ser acossado pelo Supremo Tribunal, desde que se declarou competente para investigar crimes contra o franquismo, e esta semana começou a ser julgado pelo crime de prevaricação, o mais grave delito que um magistrado pode cometer, por ter autorizado escutas telefónicas de conversas entre dois acusados e os seus advogados, violando desta forma, segundo a acusação, os direitos da defesa.
O processo contra o juiz, que se arrisca a ser condenado a ficar 17 anos sem exercer, o que significaria o fim de uma carreira judicial com um quarto de século, é visto pelos seus defensores como “perseguição política” por mais que os que o acusem tentem dizer que o magistrado “infringiu descaradamente a lei” num caso que se resume em duas penadas. Baltazar mandou escutar dois advogados (que estão na cadeia por suspeita de terem pago milhões a dirigentes do Partido Popular em troca de contratos) por haver indícios de que continuariam a lavar dinheiro na prisão.
Inclino-me para os que defendem a tese de perseguição política.
Vejamos. Como noticia o jornal El País, “Garzón, que pôs a descoberto o caso Gurtel, senta-se no banco dos réus antes dos cabecilhas da conspiração corrupta que salpica o PP”, partido no poder em Espanha.
Além disso, o juiz do Tribunal Superior de Madrid, que sucedeu a Garzón na instrução do caso Gurtel, prorrogou as escutas, assim como os procuradores anti-corrupção, que as validaram. As mesmíssimas escutas que sustentam a acusação contra Garzón.
Como diria outro filósofo e ensaísta francês, Alain (pseudónimo de Émile-Auguste Chartier) “todo o poder sem controlo leva à loucura”.
Só a loucura justifica o comportamento do Supremo Tribunal de Espanha.
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